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A dramática situação do Sahel costuma ficar em segundo plano diante de outros conflitos internacionais. No entanto, as consequências que o cenário atual da região pode ter na geopolítica global — devido ao crescimento da imigração para a Europa, ao aumento da presença russa e ao avanço do jihadismo — acenderam todos os alertas. Como se chegou a essa “multicrise”?
De acordo com dados do Global Terrorist Index 2024, elaborado pelo Institute for Economics and Peace e considerado um dos estudos mais rigorosos sobre o tema, mais da metade das mortes por terrorismo registradas no mundo no ano passado ocorreu nessa região — uma faixa de países localizada na borda sul do deserto do Saara (de fato, sahel significa “margem” em árabe) que atravessa o continente africano de leste a oeste, do Sudão ao Senegal, ao sul do Magrebe.
O Sahel também é uma das regiões mais pobres do planeta. Cinco dos dez países com menor renda per capita estão ali. Além disso, o agravamento das condições climáticas — com o aumento das temperaturas e as secas prolongadas — reduziu ainda mais os recursos de economias que ainda dependem fortemente da agricultura e da pecuária.
Para piorar, a política, tradicionalmente instável na região, tornou-se ainda mais conflituosa na última década, especialmente nos últimos cinco anos. Às guerras por conflitos separatistas soma-se a atividade crescente de grupos jihadistas, que chegaram a controlar efetivamente algumas áreas.
Diante da fragilidade do Estado, diversos países passaram por levantes militares. Onde esses golpes foram bem-sucedidos, a repressão dos novos governos autoritários e a falta de soluções para a crise econômica e a insegurança aumentaram a insatisfação popular. Fome, violência política, fanatismo religioso: a tríplice maldição que sangra o Sahel.
A sombra da Rússia
Esses três fatores estão, em parte, interligados. A questão climática é independente, mas a escassez de alimentos não decorre apenas de causas naturais: a instabilidade política e a exploração dos recursos por potências estrangeiras também influenciam, muitas vezes como “recompensa” por apoio militar na luta contra milícias separatistas ou jihadistas.
A Rússia vem ganhando influência na região ao oferecer apoio militar a governos ameaçados pelo separatismo e pelo jihadismo
O exemplo mais recente é a presença de tropas russas. Recentemente, o grupo Wagner anunciou sua retirada do Sahel, apenas dois anos após a misteriosa morte de seu antigo líder, Yevgueny Prigozhin, cujo último comunicado teria sido feito do Mali. Mas o Kremlin não perdeu tempo: em novembro de 2023, anunciou a criação do “Africa Corps”.
Paradoxalmente — ou cinicamente, dependendo do ponto de vista —, o comunicado dizia que “o Ministério da Defesa russo ajudará os Estados africanos soberanos a contrapor a influência neocolonial do Ocidente, que mina suas bases de recursos, e fortalecerá a cooperação em condições de igualdade entre a Rússia e os países africanos”.
A presença russa tem dois objetivos. O primeiro, econômico: muitos desses países têm abundantes recursos minerais, especialmente ouro. Além disso, do extremo oeste do Sahel partem rotas importantes do comércio marítimo.
O segundo, geopolítico: a Rússia busca consolidar sua influência aproveitando o vácuo deixado pela retirada das tropas francesas, que, entre 2022 e 2025, abandonaram Mali, Burkina Faso, Senegal, Chade e Costa do Marfim, muitas vezes a pedido dos próprios governos nacionais.
A propaganda russa ajudou a alimentar o sentimento antifrancês — e antiocidental em geral. Mas também é fato que a presença europeia, no geral, priorizou interesses próprios em detrimento do desenvolvimento regional. Exemplo disso foi o recente rompimento do acordo pesqueiro entre Senegal e União Europeia, com acusações de sobreexploração dos mares por técnicas agressivas.
Outro exemplo é a acusação de que a França teria abandonado Mali quando o país enfrentou, em 2012, a rebelião separatista na região de Azawad, de maioria tuaregue.
Milícias separatistas e terrorismo islâmico
O Movimento Nacional de Libertação de Azawad (MNLA), que liderou a rebelião, ilustra um dos males crônicos da região: a miríade de conflitos armados, de maior ou menor intensidade, resultantes da falta de correspondência entre fronteiras políticas e divisões étnicas. Os governos nacionais vêm se desgastando nessas guerras e, diante de seu fracasso, quase todos os países da região sofreram golpes militares.
Os mais recentes ocorreram no Níger, em Burkina Faso e no Mali, entre 2021 e 2023. Nesses países, as juntas militares instauraram governos autoritários com a promessa de reduzir a insegurança. Porém, acabaram em confronto com a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), acusada de ser um fantoche do colonialismo ocidental.
Esse embate culminou na criação da Aliança dos Estados do Sahel (AES), um novo organismo de cooperação econômica e militar que, até agora, mostra-se mais próximo de Rússia e China do que da Europa e dos Estados Unidos, além de ter levado a uma saída conflituosa da CEDEAO.
Mas não são apenas os conflitos políticos que ameaçam a estabilidade da região. A violência jihadista, presente há décadas, intensificou-se na última década, especialmente desde 2020, transformando a região no “epicentro mundial do terrorismo”. O número de mortos aumentou dez vezes nos últimos cinco anos, com os maiores índices em Burkina Faso e Mali.
O aumento do terrorismo, somado à crise climática, está levando centenas de milhares de pessoas a migrar; muitas chegam à Europa pela Espanha
Os grupos jihadistas da região se organizam, em geral, sob duas grandes “sombras” salafistas: o JNIM (com vínculos diretos ou indiretos com a Al-Qaeda) e o ISSP (a “província” do Estado Islâmico), que se estabeleceu em 2015. Até 2020, ambos coexistiam relativamente bem, chegando a cooperar em algumas ações. Mas a disputa territorial e os desentendimentos entre líderes levaram ao rompimento e ao início das hostilidades.
As estratégias também diferem: o JNIM tende a negociar com autoridades locais e busca apoio popular, enquanto o ISSP atua de forma mais agressiva, com atentados indiscriminados e maior número de vítimas. Ambos, no entanto, financiam-se de maneiras semelhantes: exploração de minas, controle de rotas do narcotráfico que levam cocaína à Europa e América, cobrança de impostos sobre uso de terras agrícolas e sequestros.
Além disso, ambos visam expandir-se. O JNIM está cada vez mais presente no Benim e no Togo, enquanto o ISSP, concentrado entre Mali, Burkina Faso e Níger, busca avançar para o sul e, possivelmente, para o norte, no Magrebe.
Corrente migratória
Todos esses fatores provocam uma migração em massa. Segundo dados da ACNUR de abril de 2024, mais de três milhões de pessoas já haviam sido deslocadas de suas casas. A maioria permanece dentro das fronteiras nacionais, mas muitas buscam sair da região ou até do continente.
Pela Mauritânia, por exemplo, chegam centenas de milhares de cidadãos de Burkina Faso e Mali. Não por acaso, a Mauritânia tornou-se o principal ponto de partida da imigração ilegal que chega à Espanha, com os malineses formando o maior grupo.
Não há sinais de que a situação no Sahel melhore no curto prazo. Aos problemas internos soma-se a disputa geopolítica num mundo de “desglobalização” e formação de alianças alternativas.
Rússia, China, Turquia e até os Emirados Árabes Unidos tentam ampliar sua influência no continente, muitas vezes apoiando governos autoritários. A ruptura entre a CEDEAO e a AES mostra que a influência ocidental na região está diminuindo.
Para Marta Driessen Cormenzana, pesquisadora do Real Instituto Elcano, a Europa deve adotar uma política pragmática e manter canais de diálogo com as juntas militares de Níger, Mali e Burkina Faso, ainda que estejam alinhadas à Rússia.
O mesmo já é feito com países que também têm laços com Moscou, como Índia e Vietnã. Esse tipo de aproximação, aliado à continuidade da ajuda humanitária, pode ser a única forma de a Europa ajudar uma população que se encontra encurralada entre fome, instabilidade política e jihadismo.
©2025 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: Hambre, inestabilidad política y yihadismo: la triple maldición que asola el Sahel



