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O fenômeno Frei Gilson revela, mais uma vez, uma verdade que se arrasta há anos: a política de ambos os espectros usa a Igreja Católica como palanque. Nas últimas semanas, Frei Gilson, membro da Ordem Carmelita Mensageiros do Espírito Santo, foi o personagem principal do tema preferido de nosso jornalismo tupiniquim, a política. O religioso, que em seu do Rosário da madrugada juntou mais de 1 milhão e meio de fieis em torno de simples orações, é um fenômeno nas redes sociais. Segundo o Google Trends, ferramenta que cruza dados nos motores de busca, a pesquisa pelo termo “Frei Gilson” aumentou cerca de 72%. Nas pesquisas relacionadas da ferramenta estão “Frei Gilson perseguido”, “Frei Gilson calado”, “Frei Gilson comunismo” e congêneres. Isso revela algo que se repercutiu nos últimos dias à exaustão: o sequestro do nome de frei Gilson a serviço da política. Leia-se “Igreja Católica” nas entrelinhas.
De um lado a esquerda, catatônica, ataca-o rotulando-o de “conservador” e o atrela ao bolsonarismo e à extrema-direita. Do outro, os bolsonaristas fingem “defender” o religioso em detrimento do conhecido “fantasma do comunismo”. Do lado da direita, o ex-presidente Jair Bolsonaro instrumentalizou a figura do religioso para dizer que ele é “atacado pela esquerda”. Nikolas Ferreira (PL-MG) fez o mesmo. Como protestante, deu um jeitinho de se autopromover como vítima da esquerda brasileira junto com seus eleitores e o supracitado frei.
O que não se espera é que políticos, seja de direita ou esquerda, instrumentalizem a fé de seu povo através de figuras religiosas para angariar votos para si mesmos e usem a religião como trampolim e palanque
Vale lembrar que Frei Gilson jamais falou sobre política em seus vídeos, tal como foi verificado pela BBC News Brasil. Todavia, esta tática de utilizar a religião como púlpito é velha e não se restringe ao que, nas últimas semanas, foi levado a cabo por políticos de direita, pois a esquerda também se atrela a religiosos católicos ao seu modo, visando seus interesses em comum. Frei Betto, ex-dominicano da Ordem dos Pregadores, participou da famigerada antologia Lula Livre Lula Livro juntamente com intelectuais do quilate de Raduan Nassar e Chico Buarque, obra que, segundo o próprio site do Partido dos Trabalhadores, foi um “ato político-literário pela liberdade de Lula”.
Em junho de 2018, na sede da Polícia Federal em Curitiba, durante o tempo em que ficou preso, Lula recebeu uma “visita espiritual” de Frei Betto. A tática de Frei Betto para usar a Igreja Católica como púlpito e angariar militantes aparece em um vídeo que circula nas redes sociais há algum tempo e consiste em “rezar” o Rosário: “Reúne na sala da sua casa um pessoal pra rezar o terço, porque se você chamar pra discutir o último livro do [Leonardo] Boff eles não vão não. Agora, se você chamar pra fazer uma Novena pra Nossa Senhora de Fátima eles vão. E aí, pedagogicamente, vá trabalhando [a ideologia] com os textos bíblicos”, diz em um evento que aparenta pertencer às Comunidades Eclesiais de Base, as CEB’s.
Leonardo Boff, citado por Frei Betto, é a mais proeminente figura da Teologia da Libertação na América Latina atrás somente de Gustavo Gutiérrez, este um dominicano peruano que faleceu em 2024, considerado o fundador da Teologia da Libertação. Boff, que também visitou Lula em abril do mesmo ano, foi interlocutor de um discurso emblemático e que sintetiza bem os laços da esquerda com a TL: “O PT não existiria se não fosse a Teologia da Libertação”, disse Lula em uma live com Leonardo Boff. Adiante, Lula diz ainda que foram as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) que fundaram as células do PT. O vídeo da live, de julho de 2020, está disponível tanto no canal oficial de Lula no YouTube como em seu site pessoal.
Todos estes fatos narrados são sintomáticos de uma política que toma posse da religião para seus fins justamente porque, para nossos representantes, a política é a própria religião em si mesma. Porém, o que a classe política não entende é que a instituição Igreja Católica não precisa da partidocracia existente no Brasil, cuja conexão do povo com seus representantes é nula. A partidocracia traz consigo a ideologia que nada mais é do que um cadáver que vaga atrás de nós e que deve ser enterrado para que, enfim, possamos descansar em paz.
Frei Gilson já se pronunciou contra as ideologias. No vídeo de um show que viralizou nas redes, ele diz ao público: “Você não segue políticos. Nenhum morreu na cruz por você. Como cristão, eu só sigo uma pessoa que se chama Jesus Cristo de Nazaré”. Isso vai ao encontro da própria doutrina presente no Catecismo.
A Igreja Católica, atualmente, se manifesta em matéria econômica, política e social somente quando se é exigido direitos fundamentais da pessoa humana ou quando atinente à salvação das almas, como reza o documento Gaudium et spes, do Concílio Vaticano II. Portanto, só há um meio de conferir o que pensa um frei, um padre, uma freira, uma abadessa, um leigo católico que seja. Deve-se recorrer, antes de mais nada, ao Catecismo e aos documentos magisteriais da Igreja, pois são deles que emanam os discursos dos fieis católicos.
A manifestação sobre temas desta natureza na Igreja Católica não é gratuita. Ela deriva e está ligada ao sétimo mandamento: não roubarás (nada mais político do que isso em nossos tempos) e atrelada também à virtude cardeal da justiça. Vem daí também o documento por excelência que culminou no pensamento econômico, político e social do catolicismo: a encíclica Rerum novarum (Das coisas novas). Este corpo de pensamento da Igreja recebeu o nome de Doutrina Social da Igreja (DSI) e foi desenvolvida no século XIX, por ocasião da Revolução Industrial e a infinita gama de transformações as quais passavam o mundo, como a nova concepção de sociedade, o êxodo rural, as novas formas de trabalho e as propriedades privadas.
No entanto, a Doutrina Social da Igreja, nascida a partir da encíclica escrita pelo papa Leão XIII em 1879, é apenas uma proposição de princípios e critérios de juízo que orientam para a ação dos temas abordados. Mas, porventura, alguém que leia a DSI pode, em princípio, encontrar ecos em passagens que transmitem ao leitor desavisado certa “sintonia” com ambos os espectros políticos. De um lado temos a justiça social e a opção preferencial pelos pobres e, por outro temos a defesa da propriedade privada e do livre mercado, obviamente sem a famigerada “mão invisível” autorreguladora de Adam Smith, justamente porque existem necessidades humanas as quais não podem ser atendidas pelo mercado.
Essas aparentes confluências de ideias são enganosas, pois a Igreja Católica condenou as ideologias do liberalismo e do comunismo/socialismo, porque ambas se encaixam-se naquilo que explica o Catecismo: “Todo sistema segundo o qual as relações sociais seriam inteiramente determinadas pelos fatores econômicos é contrário à natureza da pessoa humana e de seus atos”.
De um lado, os socialistas carregam consigo uma fixidez e utopia no cientificismo, no progressismo exacerbado e no futuro (este último de modo especial com a superação do capitalismo e implantação do último estágio e consequente abolição das classes sociais proposta por Karl Marx), ao passo que os liberais-conservadores trazem consigo um apego nostálgico ao passado, tal como assinala Edmund Fawcett em Liberalism: The Life of an Idea ou apego à “antiga ética” como apontou Stan Popescu em Autópsia da Democracia, enfim, uma ideologia de terno e gravata para chamar de sua. Ambos, esquerda e direita, ao idolatrarem o passado e o futuro, condenam nosso presente às suas ideologias individualistas.
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Ao longo dos séculos, porém, a Igreja, por meio de seus documentos magisteriais, condenou severamente as duas correntes que hoje entendemos por “direita” e “esquerda”. Podemos citar a encíclica Quanta cura, de Pio IX ou Qui pluribus e Quadragesimo anno, de Pio XI, redigida em resposta à crise econômica advinda da quebra da bolsa de Nova York em 1929 e que culminou na Grande Depressão. A mais recente encíclica de condenação às ideologias está na Centesimus annus, publicada no dia 1 de maio de 1991, dia do trabalhador, portanto, quando o então papa João Paulo II a divulgou tendo em vista o centenário da encíclica de Leão XIII: “A Rerum novarum critica os dois sistemas sociais e econômicos: o socialismo e o liberalismo”. O texto foi publicado dois anos após a queda do Muro de Berlim e a consequente dissolução do bloco soviético, cujo protagonismo João Paulo II exerceu junto às potências de então, como assinala o ex-presidente da Polônia e Nobel da Paz de 1983, Lech Wałęsa.
Mesmo condenadas por diversas vezes no decorrer dos séculos, ambas as correntes de pensamento jamais irão deixar de sofrer influência da religião, especialmente no Brasil. Com o caso Frei Gilson isso foi percebido e o fenômeno continuará com sua influência até a cabine de votação. André Janones (AVANTE-MG) percebeu isso ao disparar verdades que a esquerda, especialmente identitária, não gosta de admitir: “Não basta ser rejeitado pelos evangélicos, vamos fazer uma cruzada contra os católicos também, aí a gente se elege só com os votos dos ateus em um país em que quase 80% da população é católica ou evangélica”, escreveu via X, antigo Twitter, na semana passada.
Em pesquisa realizada em agosto de 2024 pelo Ipespe (Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas), a religião expressa pelo candidato afeta de modo decisivo o voto de um terço dos eleitores no Brasil. Em um país cuja decadência moral política é alarmante e onde o governo encontra desconfiança total da população por suas condutas malsãs, o povo de verdade, o trabalhador que acorda todo dia cedo para trabalhar (e rezar com um simples frei) ainda acredita no papel que as religiões exercem na vida pública e privada e acreditam que a espiritualidade humana vai além de esperanças materiais prometidas e não cumpridas por qualquer tipo de governo.
Mesmo com a falência do Estado e a crise da democracia, com a desconfiança de seus governantes, com a ridicularização que porventura padres e freis possam vir a sofrer, embora haja liberdade religiosa prevista no inciso VI do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, o que não se espera é que políticos, seja de que espectro forem, seja de direita ou esquerda, instrumentalizem a fé de seu povo através de figuras religiosas para angariar votos para si mesmos e usem a religião como trampolim e palanque para enganar o cidadão que os elegeram.
Lucas Daniel Tomáz de Aquino é tradutor, professor e coordenador da Pós-Graduação em Filosofia Tomista da Faculdade Vicentina (PR). É vinculado ao Studia Poinsotiana do Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e membro da Sociedade Brasileira para o Estudo da Filosofia Medieval.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



