Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Artigo

Geopolítica pode impedir atletas de disputarem competições internacionais?

Permitir que atletas paguem o preço das decisões de seus governantes é corroer o princípio mais essencial do Olimpismo: o de que o esporte é um espaço de igualdade e fraternidade (Foto: Braden Collum/Unsplash )

Ouça este conteúdo

A Carta Olímpica é clara ao afirmar que o objetivo do Olimpismo é colocar o esporte a serviço do desenvolvimento harmônico do ser humano, favorecendo uma sociedade pacífica e comprometida com a dignidade humana. No entanto, episódios recentes demonstram o afastamento desse ideal. O caso dos atletas israelenses impedidos de participar do Mundial de Ginástica Artística na Indonésia, em razão da negativa de vistos pelo país anfitrião, escancara como decisões políticas e diplomáticas estão interferindo diretamente na liberdade esportiva. O Tribunal Arbitral do Esporte (CAS) chegou a julgar o caso, mas manteve o evento sem a participação dos atletas, reforçando uma contradição entre os princípios olímpicos e a prática internacional.

Essa não é uma situação isolada. Em julho deste ano, o mesa-tenista brasileiro Hugo Calderano foi impedido de entrar nos Estados Unidos por ter visitado Cuba em 2023, quando disputou o Pan-Americano e o evento classificatório para as Olimpíadas de Paris. O veto não teve qualquer relação com sua conduta esportiva, mas com um fator externo: a política de imigração norte-americana que restringe o ingresso de quem visitou determinados países. Assim, um atleta exemplar, que representa o Brasil com destaque mundial, acabou sendo penalizado por uma questão puramente geopolítica.

Permitir que atletas paguem o preço das decisões de seus governantes é corroer o princípio mais essencial do Olimpismo: o de que o esporte é um espaço de igualdade e fraternidade

Esses casos evidenciam uma distorção grave no sistema esportivo internacional. Atletas têm sido punidos não por violarem regras esportivas, mas por serem cidadãos de determinados países ou por estarem sujeitos às políticas de seus governos. Em muitos casos, são impedidos de participar de competições decisivas, como campeonatos mundiais ou torneios classificatórios para os Jogos Olímpicos, simplesmente pela ausência de visto, uma barreira burocrática que ganha contornos de discriminação política.

Historicamente, o esporte foi concebido como espaço de neutralidade e diálogo. Desde a Grécia Antiga, guerras eram suspensas para que as Olimpíadas pudessem ocorrer em paz. No entanto, a contemporaneidade mostra que conflitos geopolíticos se refletem diretamente na arena esportiva. O banimento prolongado de atletas russos após a invasão da Ucrânia é outro exemplo de como decisões estatais recaem sobre indivíduos que, em regra, não têm participação ou poder de influência sobre as ações de seus governos.

No contexto da Rússia, estima-se que entre 2022 e meados de 2024, 353 atletas russos mudaram de nacionalidade esportiva para poder competir internacionalmente, segundo levantamento publicado pela Frontiers in Sports and Active Living. É preciso, portanto, fazer uma distinção ética e prática entre os atos dos Estados e os direitos dos atletas enquanto profissionais do esporte. Impedir a participação de um atleta por sua nacionalidade equivale a negar o próprio propósito do esporte como instrumento de união e entendimento entre os povos.

O atleta não é o governo que o representa; é um indivíduo que treina, compete e vive sob valores de disciplina, mérito e respeito, os mesmos que o movimento olímpico deveria proteger. Do ponto de vista jurídico e moral, as federações esportivas internacionais e o Comitê Olímpico Internacional (COI) têm a responsabilidade de garantir que as competições mantenham sua integridade e universalidade. Quando países-sede impõem barreiras políticas à entrada de atletas, violam não apenas tratados esportivos, mas princípios fundamentais de igualdade de condições e fair play.

VEJA TAMBÉM:

O COI e demais entidades deveriam agir de forma firme, desestimulando que nações com histórico de veto ou discriminação recebam eventos de prestígio, como Copas do Mundo, Jogos Olímpicos ou campeonatos mundiais. A neutralidade esportiva é uma necessidade para preservar a legitimidade das competições e o valor simbólico do esporte como linguagem universal. Em um mundo fragmentado por disputas ideológicas e econômicas, o campo esportivo deveria permanecer como território de convergência, não de exclusão.

Permitir que atletas paguem o preço das decisões de seus governantes é corroer o princípio mais essencial do Olimpismo: o de que o esporte é um espaço de igualdade e fraternidade. Diante disso, o que está em jogo é o próprio futuro do ideal olímpico. Se a geopolítica continuar ditando quem pode ou não competir, deixaremos de celebrar o mérito esportivo para reproduzir, nas quadras e arenas, as divisões que o esporte nasceu para superar. É urgente resgatar o espírito de neutralidade, solidariedade e respeito humano que deve guiar a convivência entre os povos, dentro e fora das arenas.

João Antonio de Albuquerque e Souza é atleta olímpico, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em Direito e Justiça Social pela UFRGS. É ex-Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD) e sócio fundador do escritório Albuquerque e Souza.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.