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Os movimentos iluministas do século 18 legaram uma imagem otimista acerca do ser humano: habitado pela razão, ele seria capaz de observar de maneira metódica o mundo, coletando evidências e embasando sua opinião em terreno mais firme do que aquele proposto pelos dogmas religiosos. Dois séculos de avanços nas ciências humanas serviram para construir uma visão mais realista: em vez de a opinião ser o produto de uma investigação metódica, ela seria formada, o mais das vezes, de maneira imperceptível, pela inserção prolongada em um meio social. Mais do que coletar "evidências", procuraríamos por "justificativas", a fim de sustentar uma visão previamente moldada.

Os casos recentes de preconceito envolvendo haitianos no Paraná ilustram bem esse ponto: após o surto de ebola em países africanos como Libéria e Serra Leoa, e a suspeita (já descartada) de contaminação de um migrante da Guiné no estado, haitianos aqui residentes tornaram-se o alvo da histeria sanitarista de alguns – possíveis veículos de contaminação, esses migrantes deveriam ser expulsos de nosso território e as fronteiras, fechadas a novas entradas. Para além da confusão geográfica (que toma o Haiti, pela cor da pele de seus habitantes, como país africano), esses casos demonstram bem o funcionamento do pensamento xenófobo: cego a evidências que possam contrariá-lo, esse pensamento se apega a pretextos que possam justificar seu temor e seu ódio, principalmente quando assentados em bases supostamente biológicas. Tal como as teorias evolucionistas do século 19 produziam atestados "científicos" acerca das diferenças "naturais" entre os povos, a fim de justificar os empreendimentos neocolonialistas, a epidemiologia de botequim de hoje justifica um preconceito de raiz histórica – produzido pelo nosso passado escravagista – a partir do direito de autoproteção contra uma epidemia.

A verdade é que o preconceito contra migrantes haitianos antecede em muito o furor em torno do ebola: documentado pelos meios de comunicação e pelas organizações de apoio a estrangeiros, ele se difunde logo que o Brasil se torna o alvo principal desse fluxo migratório, na esteira do desastre humanitário produzido no país caribenho pelo terremoto de 2010. Segundo estimativa da Acnur, já são mais de 30 mil haitianos vivendo em solo brasileiro, número que só tende a crescer. Além deles, sírios e africanos também engrossam os pedidos por refúgio ou visto humanitário.

Diante dessa nova realidade, duas alternativas se impõem: a do fechamento e consequente penalização de populações em situação de extrema vulnerabilidade; ou a da construção de políticas de acolhimento que coloquem o país na vanguarda da promoção dos direitos humanos. Esta última opção tem avançado, com iniciativas como a do projeto "Política Migratória e Universidade Brasileira", desenvolvido pela UFPR, a fim de promover o ensino de português e prestar atendimento jurídico e psicológico aos migrantes em condição de refúgio. Àqueles que consideram tais preocupações incompatíveis com um país "em desenvolvimento", cumpre lembrar que um Estado preparado para lidar com questões humanitárias internacionais e com os "excluídos de fora" é também um Estado dotado de maior capacidade para lidar com os "excluídos de dentro" e seus dilemas.

Pedro de Medeiros é professor de Ciência Política no Centro Universitário Internacional Uninter e pesquisador vinculado ao Núcleo de Pesquisa de Interações Estado/Sociedade (Nuclint-UFPR).

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