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Harvey Weinstein era um cinéfilo apaixonado, patrono do talento no cinema e pai amoroso; assumia riscos e era um monstro. Ele me assombrou durante anos.

Há alguns meses, fui procurada por repórteres, através de diferentes fontes, incluindo minha querida amiga Ashley Judd, para falar de um episódio da minha vida que, embora doloroso, achei que já tinha superado. Eu me convenci a achar que tudo era passado e que sobrevivera – e me eximi da responsabilidade de denunciar com a desculpa de que já havia gente demais ocupada em revelar o meu bicho-papão. Não achei que minha voz seria importante, nem que pudesse fazer alguma diferença. Na verdade, estava tentando me poupar do desafio de explicar várias coisas aos meus entes mais queridos – como o porquê de ter omitido alguns detalhes quando contei que tinha sido assediada, como tantas outras, por Harvey. E por que, durante tantos anos, fui educada com um homem que me magoou tanto. Sempre tivera orgulho da minha capacidade de perdoar, mas o simples fato de ter vergonha de descrever os pormenores do que tinha relevado me fez duvidar de que realmente tinha resolvido aquele capítulo da minha vida.

Quando tantas mulheres se manifestaram para descrever o que Harvey lhes tinha feito, tive de enfrentar minha própria covardia e humildemente aceitar que a minha história, por mais importante que fosse para mim, era apenas uma gota em um mar de tristeza e confusão. Àquela altura, achava que ninguém se importaria com a minha dor – o que talvez fosse efeito das muitas vezes em que ouvi, inclusive e especialmente de Harvey, que eu não era ninguém.

A seus olhos, eu não era uma artista; aliás, não era nem uma pessoa. Não era ninguém, só uma coisa, só um corpo

Finalmente estamos nos tornando conscientes de uma fraqueza que é aceita socialmente e que ofendeu e humilhou milhões de garotas como eu, pois dentro de cada mulher há uma menina. Eu me inspirei naquelas que tiveram a coragem de se manifestar, principalmente em uma sociedade que elegeu um presidente acusado de assédio e abuso sexual por mais de uma dúzia de mulheres e que contava vantagem, enquanto homem poderoso, de poder fazer o que bem entendesse com elas.

Bom, já não é mais assim.

Ao longo dos 14 anos em que deixei de ser estudante para me tornar estrela de novelas mexicanas e depois ter a sorte de conquistar bons papéis em A Balada do Pistoleiro e E Agora, Meu Amor?, Harvey Weinstein já tinha se tornado o mago de uma nova onda do cinema que levou o conteúdo original para os filmes comerciais. Ao mesmo tempo, era inimaginável para uma atriz mexicana aspirar a um lugar em Hollywood – e, apesar de eu ter conseguido provar que estavam todos errados, continuava sendo ninguém.

Uma das forças que me deu a determinação de seguir a carreira foi a história de Frida Kahlo, que, na época de ouro dos muralistas mexicanos, fazia pinturas pequenas, intimistas, que todo mundo desprezava. Ela teve a coragem de se expressar sem se importar com o ceticismo. Minha grande ambição era contar sua história. Assumi como missão minha retratar a vida dessa artista extraordinária e mostrar minha terra natal de uma forma que combatesse os estereótipos.

O império Weinstein, que na época era a Miramax, tornara-se sinônimo de qualidade, sofisticação e tomada de riscos – ou seja, um verdadeiro paraíso para artistas complexos e desafiadores. Era tudo o que Frida era para mim e tudo a que eu aspirava ser.

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Comecei a odisseia de produção do filme com outra empresa, mas acabei brigando para reavê-lo e entregá-lo a Harvey. Eu o conhecia “de longe”, por causa da relação que tinha com o diretor Robert Rodriguez e a produtora Elizabeth Avellan, na época marido e mulher, com quem tinha feito vários trabalhos e que se consideravam meio que meus padrinhos. A única coisa que sabia de Harvey na época era que tinha uma inteligência privilegiada, era um amigo leal e homem de família.

Sabendo o que sei hoje, fico imaginando se não foi a minha amizade com eles – e Quentin Tarantino e George Clooney – que me salvou de ter sido estuprada.

O acordo que fechamos inicialmente dizia que Harvey pagaria pelos direitos do trabalho que eu já tinha desenvolvido. Como atriz, receberia o mínimo estipulado pelo sindicato (SAG), mais 10%; como produtora, receberia um crédito ainda não definido, mas nenhum pagamento, o que era comum para as mulheres nessa função nos anos 90. Ele também exigiu que eu assinasse um contrato para participar de vários outros filmes da Miramax, detalhe que eu achava que consolidaria minha posição enquanto protagonista.

O dinheiro não me interessava; estava superempolgada por trabalhar com ele e com a produtora. Ingênua, achei que meu sonho tinha se realizado. Ele tinha feito valer os últimos 14 anos da minha vida. Tinha dado uma chance a mim, uma ninguém. Tinha me dito sim.

Mal sabia eu que seria a minha vez de dizer não.

Eu me recusei a abrir a porta para ele a qualquer hora da noite, em todos os hotéis em que nos hospedávamos, em todas as locações em que estivéssemos, nos quais aparecia do nada, incluindo uma ocasião em que rodava um filme com o qual ele nem estava envolvido.

Eu me recusei a tomar banho com ele. Eu me recusei a deixá-lo me ver tomar banho. Eu me recusei a deixá-lo me massagear. Eu me recusei a deixar que um amigo dele, nu, me fizesse uma massagem. Eu me recusei a permitir que fizesse sexo oral em mim. Eu me recusei a ficar nua com outra mulher. Não, não, não, não, não…

E, a cada negativa, aumentava a fúria maquiavélica de Harvey.

Acho que não havia nada que ele odiasse mais que a palavra “não”. O absurdo de suas exigências – que começaram com um telefonema furioso no meio da madrugada, exigindo que eu despedisse meu empresário por causa de uma briga dos dois envolvendo outro filme de outro cliente – chegou ao ponto de ele me arrastar, fisicamente, para fora da cerimônia de lançamento do Festival de Veneza, que homenageava Frida, para me levar para sua festinha particular, na qual havia algumas mulheres que achei serem modelos, mas que soube depois serem prostitutas de alto luxo.

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Usava várias táticas de persuasão que iam desde as palavras mais doces até uma vez em que, em um ataque de fúria, disse aquelas terríveis palavras: “Eu vou te matar; não vai pensando que não tenho coragem”.

Quando ele finalmente se convenceu de que eu não faria o filme da maneira que esperava, disse que tinha oferecido o meu papel e o meu roteiro, com anos de pesquisa, para outra atriz.

A seus olhos, eu não era uma artista; aliás, não era nem uma pessoa. Não era ninguém, só uma coisa, só um corpo.

Àquela altura, tive que apelar para os advogados – mas não para denunciar o caso de assédio sexual, e sim de “má fé”, uma vez que eu me dedicara tanto a um filme que ele não tinha a intenção de fazer, nem de me vender de volta. Tentei tirá-lo de sua companhia.

Ele alegou que, como atriz, eu não era muito famosa e, como produtora, era incompetente, mas percebi que, para se safar legalmente, ele me deu uma lista de tarefas praticamente impossíveis de cumprir em um prazo tão curto: reescrever o roteiro, sem pagamento adicional; levantar US$ 10 milhões para financiar o filme; indicar um diretor de primeiro escalão; e escalar atores famosos para quatro dos menores papéis.

Para surpresa de todos, inclusive a minha, consegui cumprir todas as exigências, graças a uma falange de anjos que veio em meu socorro – incluindo Edward Norton, que reescreveu o roteiro diversas vezes, maravilhosamente bem e, horror dos horrores, nunca recebeu crédito por isso, e minha amiga Margaret Perenchio, produtora de primeira viagem, que bancou a empreitada. A brilhante Julie Taymor concordou em dirigir e, desde então, tem sido a minha fortaleza. Para os outros papéis, convoquei meus amigos Antonio Banderas, Edward Norton e minha querida Ashley Judd. E até hoje não sei como convenci Geoffrey Rush, que eu mal conhecia na época.

Perdida na névoa da síndrome de Estocolmo, confesso que queria que ele me considerasse uma boa artista

A partir dali, então, Harvey Weinstein não só fora rejeitado como estava prestes a fazer um filme que não queria.

Ironicamente, assim que começaram as filmagens, o assédio sexual parou, mas a fúria se renovou. Pagamos o preço por ficarmos perto dele praticamente todos os dias de trabalho. Uma vez, em uma entrevista, ele disse que Julie e eu éramos as maiores megeras que já tinha conhecido, o que consideramos um elogio.

No meio dos trabalhos, Harvey apareceu um dia no set para reclamar da monocelha de Frida. Insistiu para que eu parasse de mancar e criticou meu desempenho; em seguida, pediu para que todos os outros saíssem da sala, menos eu. E disse, sem rodeios, que a única coisa que eu tinha era o apelo sexual – que, aliás, nem aparecia no filme, e que ele ia cancelá-lo porque ninguém haveria de querer me ver naquele papel.

Aquilo me deixou arrasada porque, perdida na névoa da síndrome de Estocolmo, confesso que queria que ele me considerasse uma boa artista; não só uma atriz competente, mas alguém que sabia identificar uma história interessante e conseguia contá-la de maneira original. Esperava que me reconhecesse como produtora – que, além de cumprir a lista de exigências que ele impusera, reorganizara o roteiro e obtivera permissão de usar as pinturas. Negociara com o governo mexicano, e com quem mais fora necessário, para obter permissões que nunca tinham sido dadas a ninguém antes, incluindo as casas em que Frida Kahlo morou e os murais de seu marido, Diego Rivera, entre outras.

Só que nada disso parecia ter valor; a única coisa que ele percebeu foi que eu não aparecia em um papel sensual. Conseguiu fazer com que eu questionasse minha capacidade de atuação, mas não de achar que o filme não valia a pena ser feito.

Ele me ofereceu uma opção para continuar: me deixaria concluir o filme se eu concordasse em fazer uma cena de sexo com outra mulher. E exigia nudez frontal. O tempo todo ficava pedindo mais exposição do corpo, mais sexo. Em uma ocasião anterior, Julie Taymor o fez concordar com a cena de um tango que terminava em um beijo e não na transa que ele queria que filmássemos entre Tina Modotti, personagem de Ashley Judd, e Frida.

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Dessa vez, porém, ele deixara bem claro que não me deixaria terminar o filme se eu não realizasse sua fantasia, de um jeito ou de outro. Não havia espaço para negociar.

Tive de aceitar; já tinha dedicado tantos anos da minha vida àquele trabalho. As filmagens já iam a mais de mês e eu conseguira convencer tanta gente talentosa a participar. Como permitir que uma obra magnífica daquelas fosse desperdiçada? Pedira favores para tanta gente! E, por isso, sentia uma pressão enorme para fazer tudo dar certo, além, é claro, da imensa gratidão por todos que acreditaram em mim e me acompanharam naquela loucura. Então concordei em fazer a cena sem sentido.

Cheguei ao set no dia da filmagem da sequência que eu achava que salvaria o filme – e, pela primeira e última vez na minha carreira, tive um colapso nervoso. Meu corpo começou a tremer incontrolavelmente, fiquei sem fôlego e comecei a chorar sem parar, como se não conseguisse me conter. Como ninguém mais tinha conhecimento da minha história com Harvey, todo mundo ficou muito surpreso com a minha reação naquela manhã. Não era porque eu ficaria nua com outra mulher, mas sim porque eu estava sendo forçada a isso por Harvey Weinstein. Mas não podia contar para ninguém.

Minha mente entendia que eu tinha de fazer, mas meu corpo não conseguira parar de chorar e tremer. Para piorar, comecei a vomitar enquanto o set inteiro, paralisado, esperava. Tive de tomar um calmante, que ajudou a parar a choradeira, mas me fez vomitar ainda mais. Como vocês podem imaginar, não foi nada sensual, mas foi o único jeito que encontrei de fazer a tal cena.

Quando as filmagens do filme terminaram, eu estava tão desgastada emocionalmente que tive de me distanciar da pós-produção.

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Quando Harvey viu a versão editada, disse que não era boa o bastante para estrear no cinema e que mandaria direto para vídeo. Dessa vez, Julie teve de peitá-lo sozinha e fazê-lo concordar em lançar o filme em pelo menos um cinema em Nova York para testar a reação do público e tentar obter uma nota de pelo menos 80. Menos de 10% de todos os filmes obtêm uma nota dessas na primeira exibição. Eu nem fui. Fiquei esperando, quase morta de ansiedade, pelo resultado: o filme emplacou 85.

E novamente se fez sentir a fúria de Harvey: no saguão do cinema, após a exibição, ele começou a gritar com Julie. Pegou um dos formulários de desempenho, amassou e jogou nela. Acabou lhe acertando no nariz. Seu companheiro, o compositor da trilha sonora do filme, Elliot Goldenthal, interveio e Harvey o ameaçou fisicamente.

Depois de lhe dar um tempo para se acalmar, encontrei forças para telefonar e pedir que levasse o filme para Los Angeles, permitindo assim a exibição em dois cinemas. Sem ter muito que fazer, concordou. Devo confessar que, às vezes, Harvey também era gentil, engraçado e tinha ótimas tiradas, mas a gente nunca sabia com qual faceta teria que lidar.

Meses depois, em outubro de 2002, aquele filme sobre a minha heroína e inspiração – a artista mexicana que nunca foi devidamente reconhecida em sua época porque mancava e tinha monocelha –, aquele longa que Harvey nunca quis fazer, lhe rendeu um sucesso de bilheteria que ninguém previra. E, apesar de sua falta de apoio, lhe garantiu seis indicações ao Oscar, incluindo a de Melhor Atriz.

As mulheres foram desvalorizadas artisticamente ao ponto da indecência

Mesmo tendo Frida lhe dado duas estatuetas, nunca vi nenhum reconhecimento. Ele nunca mais me ofereceu nenhum papel de protagonista; dos filmes da qual fui obrigada a participar, segundo a cláusula do contrato original com a Miramax, fui só coadjuvante.

Anos depois, quando o encontrei em um evento, ele me puxou de lado para contar que tinha parado de fumar por causa de um ataque cardíaco que sofrera. Disse também que se apaixonara e se casara com Georgina Chapman e que era um homem mudado. E concluiu: “Você foi ótima em Frida; fizemos um belo filme”. Acreditei nele. Harvey nunca soube o quanto aquelas palavras foram importantes para mim. Nem o quanto tinha me machucado. Nunca lhe mostrei o quanto ele me apavorava. Quando o encontrava socialmente, sorria e tentava me lembrar de seu lado bom; dizia a mim mesma que tinha ido à guerra e vencera.

Mas por que tantas artistas têm de brigar para contar suas histórias quando têm tanto a oferecer? Por que temos de lutar o tempo todo e nos armarmos até os dentes para manter a dignidade? Acho que é porque as mulheres foram desvalorizadas artisticamente ao ponto da indecência, ao ponto de a indústria cinematográfica parar de se esforçar em descobrir o que o público feminino quer ver e as histórias que queremos contar.

Segundo um estudo recente, feito entre 2007 e 2016, somente 4% dos diretores eram mulheres; dessas, 80% tiveram a chance de fazer um filme só. Em 2016, um outro estudo revelou que somente 27% dos diálogos dos maiores filmes eram femininos. E o pessoal não sabe por que não ouviu nossas vozes antes. Acho que as estatísticas falam por si: elas não são bem-vindas.

Enquanto não houver igualdade no cinema, com homens e mulheres sendo valorizados da mesma forma em todos os aspectos, nossa comunidade continuará a ser campo fértil para os predadores.

Agradeço muito a todos os que estão ouvindo nossas experiências. Ao engrossar o coro daquelas que finalmente resolveram se manifestar, espero ajudar a fazê-los entender por que é tão difícil se abrir e por que tantas demoraram tanto tempo para ter essa coragem. Os homens nos assediavam sexualmente porque podiam; e as mulheres estão se abrindo hoje porque, nesta nova era, finalmente podemos fazê-lo.

Salma Hayek é atriz e produtora de cinema, indicada ao Oscar de Melhor Atriz por “Frida”.
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