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Honestidade e abuso estético: a manipulação da arte

A arte perde valor quando sacrifica a honestidade pela viralização, transformando a verdade em espetáculo e distorcendo o imaginário. (Foto: Imagem criada utilizando Chatgpt/Gazeta do Povo)

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Existe um tipo específico de honestidade que assola aqueles com sensibilidade artística. É a percepção da disparidade entre a verdade e as imagens que a representam. Chamo isso de honestidade audiovisual.

Com os avanços tecnológicos e a facilidade atual de produzir imagens, conteúdos e documentários, vivemos uma massificação da produção audiovisual. A distância entre criação e distribuição nunca foi tão curta. 

Essa aceleração tem um efeito colateral preocupante: a falta de reflexão no ato de criar. Artistas, criadores e marqueteiros, imersos na lógica da viralização, muitas vezes colocam a disseminação de seus conteúdos acima de qualquer outro critério — inclusive sua própria consciência moral.

Fernando Pessoa pontuou essa questão com precisão: “Quem manda pois à arte ser moral? A resposta é simples: a moral. Manda-o a moral porque a moral deve reger todos os atos da nossa vida e a arte é uma forma da nossa vida. (...) A arte, qua arte, tem por fim apenas a beleza. A razão que a manda ser moral existe na moral, que é exterior à estética; existe na natureza humana.”

Ora, as imagens e as narrativas não são passíveis de total liberdade. Não se pode contar uma história apenas porque ela gera engajamento, dinheiro ou audiência, sem considerar a honestidade do discurso e das imagens. Sim, existem imagens desonestas.

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Isso ocorre, por exemplo, quando o sofrimento é estilizado para gerar impacto, mas sem compromisso com a verdade da experiência humana. Ou, ainda, quando a dor alheia é explorada para chocar ou emocionar, sem real intenção de reflexão ou denúncia. E nas fotografias de guerra ou tragédias humanitárias usadas mais como espetáculo do que como registro de denúncia ou compaixão.

Há em nossa sociedade dois agravantes para esses abusos: a onipresença das redes sociais e o domínio do marketing sobre outros modos de expressão. As redes sociais criaram um ambiente de constante propaganda — não apenas de produtos, mas da própria vida, como é o caso dos famosos influencers.

Celebramos as conquistas, vivências e até sofrimentos alheios de maneira propagandística, como se a autenticidade de nossa existência dependesse do quanto ela pode ser vendida ou validada publicamente.

A partir desse raciocínio propagandístico incessante, confundimos a estética do existir com a estética do promover, deturpando nossa percepção da realidade e transformando o discurso artístico em mero produto de consumo.

Cada ato concreto da vida humana se torna uma nova oportunidade de criar o marketing de si mesmo. A existência transforma-se, então, em um reino diabólico, onde se vive permanentemente sob o olhar de uma plateia de julgadores.

Além disso, vivemos imersos em uma cultura na qual a linguagem do marketing se sobrepôs à verdadeira linguagem artística e poética. Até mesmo obras cinematográficas, que outrora prezavam pela expressão estética genuína, passaram a adotar estratégias de engajamento típicas da publicidade.

A arte perde sua autonomia e se submete às regras da venda e da popularidade. Temática, linguagem e até mesmo a estrutura de produção das obras são pensadas para corresponder às exigências do mercado. Desacostumamo-nos à ideia singela de que as obras de arte não precisam defender ideias ou conceitos e esquecemos que elas podem nos abrir para um mundo novo.

Se há honestidade na arte, há também o abuso. O abuso da imagem, do discurso, a chantagem estética. Considero essa corrupção tão grave quanto qualquer outra forma de desonestidade. Talvez pior, pois, dada sua sutileza, passa despercebida aos olhos de um público deseducado, influenciando sua imaginação e moldando sua visão de mundo de maneira distorcida — deturpando, assim, a verdade que jura defender.

As artes poéticas — o cinema, a fotografia, a literatura, etc — são os instrumentos que nutrem nossa imaginação. Tudo aquilo que imaginamos e projetamos em nossa memória é fruto das histórias que vimos ou experienciamos nas artes e na cultura.

É por isso que, na filosofia aristotélica, a imaginação é colocada no início do processo de cognição. Iniciamos o entendimento do mundo através do nosso arcabouço imaginativo. E são os artistas e criadores os responsáveis por alimentar esse imaginário.

Isso coloca uma extrema responsabilidade nas mãos deles. Os temas de suas obras não podem ser usurpados para fins comerciais ou marqueteiros, pois o risco que se corre é o de formatar nas massas uma imaginação deturpada sobre o mundo – que pode causar sofrimentos e confusões. A honestidade audiovisual, nesse contexto, não é apenas um ideal ético, mas um compromisso com a sociedade.

Matheus Bazzo é fundador da Lumine e da Minha Biblioteca Católica.

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