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É interessante observar como a inteligência artificial (IA), retratada como “ficção científica” durante décadas, cruzou silenciosamente a porta da escola. Hoje ela se apresenta em assistentes de planejamento, plataformas adaptativas e até mesmo na correção de avaliações.
Não chegou com espetáculo, mas com algoritmos e estatísticas. E embora seja tentador enxergá-la como uma panaceia, a IA na educação levanta uma pergunta essencial: estamos usando essas ferramentas para aprofundar o humano ou apenas para empacotar a escola do século XIX com enfeites do XXI?
O que me instiga não é o que a tecnologia faz — é o que ela nos obriga a rever. Pela primeira vez em muito tempo, o educador já não é a única fonte de informação dentro da sala de aula. Isso não é uma ameaça; é uma chance de deslocar o foco da transmissão para a mediação, da repetição para a criação.
Os sistemas inteligentes podem cuidar do operacional, mas o papel de educar, escutar com atenção, compreender necessidades, conectar o conhecimento à realidade dos estudantes e ajudá-los a transformar esse saber em soluções para os desafios que já enfrentam são funções indelegáveis para a máquina que só um bom educador é capaz de oferecer.
Nesse cenário, quem não entende de novos recursos talvez possa não aproveitar todo o potencial da aprendizagem, mas quem depende só da tecnologia definitivamente não educa.
Personalização da aprendizagem é, talvez, o ponto mais evidente dessa mudança. Uma inteligência artificial pode analisar em tempo real quais conteúdos um aluno domina, quais precisa reforçar e em qual formato aprende melhor. Isso é revolucionário. Ela respeita ritmos, contextos e trajetórias, algo que há muito tempo o modelo tradicional negligencia.
Os riscos da inovação sem inclusão
Números divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2023, por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), mostram que mais de 22 milhões de brasileiros ainda não têm acesso à internet em casa. Isso significa que qualquer projeto baseado em automação que ignore a infraestrutura está fadado a reforçar desigualdades.
Não existe inclusão tecnológica sem inclusão digital. A inteligência pode ser artificial, mas a exclusão continua bem real. O progresso precisa vir acompanhado de políticas públicas e vontade política — não só de aplicativos.
Existe também outro ponto que pode ser perigoso: o viés algorítmico. Soluções automatizadas aprendem com dados históricos. E dados históricos, bem sabemos, carregam marcas de discriminação, desigualdade e silenciamento.
A Relatora Especial da ONU para o Direito à Educação, Farida Shaheed, em seu relatório temático apresentado à Assembleia Geral da ONU em outubro de 2024, alertou que decisões como admissões escolares e classificações de desempenho baseadas exclusivamente em IA podem aprofundar distorções sociais. Uma plataforma sem supervisão humana não é neutra. É apenas rápida em repetir nossos erros.
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IA como potencial e provocação
Para além dos riscos, há um horizonte empolgante. A IA pode libertar o professor de tarefas mecânicas e abrir tempo para aquilo que nunca coube em uma planilha: ouvir, acolher, motivar.
Já imaginou se todo educador tivesse mais tempo para pensar em projetos criativos, acompanhar cada estudante com atenção e reinventar sua prática?
A tecnologia certa, no contexto certo, não diminui a presença do professor; ela o potencializa. Mas isso só acontece quando a formação docente caminha com a inovação
Não podemos romantizar. Há resistências legítimas, receios compreensíveis e dilemas que ainda não sabemos resolver. Como lidar com a autoria de um texto escrito por um “robô”? Como garantir que o estudante continue aprendendo a errar e refazer, quando a resposta pronta está a um clique?
Essas são perguntas abertas, que exigem mais reflexão do que resposta. E talvez aí esteja o maior presente que a inteligência artificial pode dar à escola: a chance de voltar a perguntar, de fazer pausas, de pensar a educação como um processo vivo, inacabado. E não como uma esteira de produtividade.
O amanhã não será comandado por máquinas, mas por decisões humanas sobre como usá-las. A inteligência artificial pode ser amplificadora de equidade ou reforçadora de abismos, e tudo depende do critério com que for conduzida. Cabe a nós escolher se vamos usá-la para maquiar o modelo educacional do passado ou para construir, com coragem, o modelo educacional do futuro.
Breno Heleno Ferreira é especialista em Inteligência Artificial e Inovação Educacional no Poliedro Educação. É Google Certified Innovator, mestre em Educação e Docência pela UFMG e possui MBA em Gestão de Projetos pela USP. Possui mais de 10 anos de experiência em educação e tecnologia.
Conteúdo editado por: Aline Menezes



