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A lisura do processo de licitações representa o cerne da confiança depositada pela coletividade na administração pública. A Constituição, ao determinar a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput), exige que as decisões públicas sejam, essencialmente, pautadas por critérios técnicos e objetivos. Porém, em casos recentes, nota-se o surgimento de decisões marcadas por viés ideológico, capazes de comprometer não apenas a economicidade da aquisição, mas também a própria legitimidade dos atos de gestão.
Em âmbito privado, a decisão de consumo é frequentemente influenciada por fatores subjetivos, como preferências individuais, afinidades ou até motivações puramente emocionais. É o que a psicologia do consumo já identificou como elementos relevantes para a escolha, tais como preço, qualidade percebida e escassez, combinados a apelos afetivos e até mesmo ideológicos.
Contudo, essas motivações – legítimas e até bem-vindas na seara privada – não encontram guarida quando o comprador é o Poder Público. Por força de mandamento constitucional, a seleção de bens e serviços pelo Estado deve refletir apenas o interesse coletivo e obedecer a critérios de natureza objetiva, tudo de modo a assegurar o bom uso de recursos públicos.
A Constituição, em seu art. 37, XXI, e a Lei n. 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações) estipulam balizas claras para a condução dos certames públicos. Em síntese, essas normas determinam que a administração pública: (i) garanta ampla competitividade, permitindo que todos os eventuais fornecedores em condição de atender à demanda possam participar do processo licitatório em pé de igualdade; (ii) defina de antemão os critérios técnicos e objetivos que nortearão a escolha; (iii) adote, na análise das propostas, o julgamento objetivo, em consonância com o edital; e (iv) vincule-se às regras do procedimento, não podendo inovar ou criar exigências discricionárias sem base legal.
A tentativa de usar pautas diplomáticas ou posições políticas como fundamento para a recusa na formalização de contrato validamente licitado configura, em última análise, uma espécie de abuso de poder
Esses pilares visam coibir qualquer interferência motivada por razões estranhas ao interesse público, como preconceitos, escolhas políticas transitórias ou preferências pessoais, de modo que a licitação configure a maior garantia de probidade no uso dos recursos estatais. Por isso, tentativas como a do governo federal, que pretendia cancelar licitação para compra de blindados israelenses são ilegais.
Apesar de o Tribunal de Contas da União (TCU) não ter identificado qualquer ilegalidade na contratação de empresa israelense declarada vencedora do certame, setores do governo, invocando divergências políticas relacionadas a conflitos internacionais, teriam dificultado a conclusão do processo, contrariando pareceres técnicos do Exército e da própria Corte de Contas. Esse episódio ilustra, de forma clara, como elementos subjetivos – de natureza ideológica ou partidária – podem contaminar um ato administrativo que deveria, por mandamento constitucional, apoiar-se unicamente em parâmetros objetivos.
Uma vez que não há dispositivo legal ou acordo internacional que imponha restrição a fornecedores sediados em países em conflito, a recusa de celebrar o contrato por mero descontentamento político acaba por caracterizar desvio de finalidade e afronta aos princípios constitucionais de impessoalidade e moralidade. A administração pública, segundo a clássica lição de Direito Administrativo, só pode fazer aquilo que a lei autoriza. Sob o prisma da legalidade, não há espaço para motivações que extrapolem as condições objetivas de contratação, sobretudo nas hipóteses em que o TCU tenha atestado a inexistência de óbice legal ou irregularidade técnica.
Já o princípio da impessoalidade repele o uso, de forma discriminatória, dos critérios como origem geopolítica, posicionamento ideológico ou nacionalidade.Se a lei e o edital não vedam a participação de fornecedores oriundos de determinado país, a administração não pode se valer de preferências ideológicas para inviabilizar a contratação, sob pena de distorcer os fundamentos da licitação.
Por fim, a moralidade administrativa obriga a observância de padrões éticos e de boa-fé na condução dos negócios públicos. Manter um procedimento licitatório intacto desde 2023, com investimento de recursos humanos e financeiros, para ao final paralisá-lo sob alegações não previstas em lei traduz uma quebra de confiança em face dos participantes e da própria coletividade que financia a máquina pública. Vale frisar que, no contexto desse certame, o TCU analisou detalhadamente a contratação e concluiu pela regularidade do processo. Além disso, registrou expressamente que não há óbice jurídico para contratar empresas sediadas em países em conflito, tampouco restrição sobre a suposta natureza “sensível” do equipamento.
Ao indeferir medidas cautelares de terceiros interessados, o Tribunal rechaçou a possibilidade de a segunda colocada assumir o contrato e reafirmou a higidez da seleção que consagrou a empresa israelense vencedora. A partir desse juízo especializado do TCU, ficou patente que qualquer tentativa de suspender ou cancelar o contrato por razões político-ideológicas posiciona-se em desacordo com a própria supervisão exercida pelo órgão de controle.
No campo da defesa nacional, as aquisições de alto valor tecnológico — como blindados, aeronaves e sistemas de vigilância — não devem ser influenciadas pela conjuntura partidária do momento. O reaparelhamento das Forças Armadas constitui um programa de Estado, com metas de longo prazo que visam à soberania do país. A introdução de motivações políticas efêmeras, especialmente quando fundadas em preconceito ou antipatias ideológicas, abala a continuidade desses projetos estratégicos, gerando insegurança institucional e desperdício de recursos.
A insistência em paralisar a contratação já concluída traria danos imediatos: desperdício dos recursos aplicados na elaboração de estudos, testes, pareceres técnicos e deslocamentos; possível incremento de custos em razão de flutuações de mercado e cambiais, caso se decida refazer ou postergar o certame; fragilização da defesa por prolongar o uso de equipamentos obsoletos, com risco concreto à segurança nacional; e abalo na confiabilidade da administração brasileira perante fornecedores internacionais, afetando futuros contratos.
Na linha do entendimento adotado pelo TCU, a ideologia do gestor não pode imiscuir-se na fundamentação do ato administrativo quando há critérios previamente estabelecidos em lei e em edital. A decisão pública, por força de mandamento constitucional, deve refletir a melhor solução para a coletividade, não podendo ser aprisionada por convicções políticas ou embargos subjetivos de quem ocupa temporariamente o poder.
A tentativa de usar pautas diplomáticas ou posições políticas como fundamento para a recusa na formalização de contrato validamente licitado configura, em última análise, uma espécie de abuso de poder. O desvio de finalidade é evidente: se a licitação objetiva suprir determinada necessidade (modernizar a artilharia das Forças Armadas), qualquer motivação que não guarde sintonia com esse interesse público desvirtuará o ato, passível de invalidação.
O processo licitatório revela-se como uma das maiores conquistas de nosso ordenamento, pois canaliza o uso de recursos públicos para escolhas racionais e impessoais, livres de paixões políticas ou preferências particulares. Quando a administração ignora esses parâmetros para atender a inclinações ideológicas, quebra-se a confiança depositada pela sociedade e viola-se o pacto densificado na Constituição.
A decisão de comprar, no setor público, não pode se basear em discriminações vinculadas à origem do fornecedor nem em momentâneas conveniências políticas. O respeito incondicional aos princípios constitucionais e à norma licitatória deve prevalecer, sob pena de, além do desperdício de dinheiro público, afetar direitos fundamentais como a própria segurança nacional. Afinal, onde impera a lei, a impessoalidade e o interesse comum, não há espaço para que a ideologia (potencialmente antissemita) se sobreponha à licitação.
Paulo Liporaci, advogado, é sócio do Liporaci Advogados.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



