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A nação está dividida entre o bem e o mal, posição devidamente intercambiável a depender do interlocutor, o que praticamente inviabiliza o diálogo racional e sensato. Mas sempre é possível uma pretensiosa análise objetiva de determinados aspectos do contexto político, como a que pode partir da indagação: o impeachment é golpe?

Conflitos de interesses pessoais sempre existiram e sempre existirão. É da natureza humana. O grau de civilidade de um povo tem relação com a forma pela qual serão resolvidos. Uma delas é por intermédio da intervenção do Estado. Na percepção de Hobbes, inclusive, sem a ação estatal a convivência humana seria reduzida a uma guerra de todos contra todos, com prevalência da vontade do mais forte.

Não parece que cumprir a lei e a Constituição possa caracterizar golpe de Estado

No sistema constitucional ocidental, a prevalência para a solução de conflitos de interesses se dá pela existência e atuação de um órgão julgador, que exerce a chamada função jurisdicional: função de julgar, portanto, e decidir qual interesse deve prevalecer, sempre com base nas leis locais. Esta função de julgar é exercida como função típica pelo Poder Judiciário, pela atuação de magistrados escolhidos pela forma que a Constituição determinar. Contudo, esta função de julgar não é exclusiva do Poder Judiciário. Há situações em que a Constituição atribui o dever e a competência de julgar a órgão que não integra o Poder Judiciário.

Tal é o caso do julgamento do presidente da República pelo suposto cometimento de crime de responsabilidade previsto na Lei 1.079/50, que pode levar à perda do cargo (impeachment). A competência para julgar o presidente da República em caso de lhe ser atribuído o cometimento de crime de responsabilidade é do Poder Legislativo. Caberá a este poder, na forma da lei e da Constituição, decidir se o presidente da República cometeu ou não um dos crimes legalmente previstos.

Alguns dos crimes previstos na lei do impedimento têm natureza aberta, descritos mediante uso de conceitos jurídicos indeterminados, como, por exemplo, “proceder de modo incompatível com a honra, a dignidade e o decoro do cargo”, a demandar um juízo de interpretação bastante complexo por parte do julgador: o que seria dignidade e decoro exigíveis no exercício das atribuições do cargo? À guisa de exemplo, não há dificuldade em deduzir o que seja uma conduta que caracterize o crime de homicídio – matar alguém. De qualquer sorte, quem deve, por hipótese, dizer se a conduta do presidente foi ou não compatível com os valores jurídicos que a lei pretende defender? Seria tolerável que a decisão sobre o cometimento de qualquer crime fosse atribuída ao próprio acusado ou aos encarregados de sua defesa? Ou, ao reverso, aos acusadores? Parece óbvio que em um ou outro caso nem sequer seria necessário julgamento, pois o resultado já seria conhecido de antemão.

Concordemos ou não com o sistema determinado pela Constituição e pela lei, ele prevê que alguém pode acusar outra pessoa do cometimento de crime, que produzirá sua defesa no âmbito do devido processo legal. E o devido processo legal para os casos de suposto cometimento de crime de responsabilidade tramita perante o Poder Legislativo, “com todas as circunstâncias” – parodiando Ortega y Gasset – benéficas e maléficas. No caso de suposto crime de responsabilidade do presidente da República, cabe ao Poder Legislativo o julgamento, pela forma constitucionalmente prevista.

Pode-se discordar do sistema constitucionalmente estabelecido, e mesmo defender a sua modificação, mas hoje somente o Poder Legislativo detém competência para afirmar se houve ou não a prática de crime que possa levar ao impedimento do presidente da República. Há o direito de acusar. Há o direito de defesa. E o consequente direito de julgar. Não parece que cumprir a lei e a Constituição possa caracterizar golpe de Estado.

José Anacleto Abduch Santos, advogado e procurador do Estado, é mestre e doutor em Direito Administrativo e professor do Unicuritiba.
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