Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Artigo

Inglaterra, 1647: lição esquecida para o Brasil de hoje

(1811-1886) Pintura da Batalha de Marston Moor. A batalha ocorreu em 2 de julho de 1644, durante a Guerra Civil Inglesa. (Foto: John Barker/Galeria de Arte e Museus de Cheltenham, Gloucestershire, Reino Unido.)

Ouça este conteúdo

O esteio filosófico da Guerra Civil Inglesa (1643-1651) – que derrubou a monarquia de Carlos I, levando Oliver Cromwell (1599-1658) ao poder como Lorde Protetor (1653-1658) – é o tema de “The Levellers and Natural Law: The Putney Debates of 1647”, em The Journal of British Studies 20 (Fall 1980): 74-89.

O ensaio toca em elementos do que viria a ser a concepção liberal contemporânea: por exemplo, a de Hayek em Os fundamentos da liberdade (1983) e Direito, legislação e liberdade (1985), bem como a da ciência econômica desenvolvida pela Escola Austríaca de Menger, Böhm-Bawerk, Mises e Hayek; e da “economia constitucional”, que rendeu a James Buchanan o Prêmio Nobel em 1986.

No ensaio, o professor Richard A. Gleissner, da Universidade George Mason, EUA, explica a perspectiva do direito natural defendida pelos Levellers (os Niveladores) daquela revolução.

Com base nos documentos que registraram os debates transcorridos na Igreja de Santa Maria em Putney, no sul de Londres, em outubro e novembro daquele ano, Gleissner entende que a visão democrática dos Levellers surgiu de sua compreensão do conceito histórico do direito natural.

Ou seja, da ideia antiga, resgatada por Tomás de Aquino (1225-1274) e Richard Hooker (1554-1600), com base na percepção de que o ser humano tem uma natureza distinta que clama por ser consubstanciada mediante experiência e esforço mental em um ambiente de liberdade.

Assim, os líderes daquela guerra foram à essência da liberdade – à importância da enteléquia subjacente ao autoconhecimento e à autorrealização, que visa à evolução espiritual do indivíduo mediante o processo de educação.

Essas premissas, aponta Gleissner, levaram os Levellers a exigir que todos os “homens” livres – mesmo os que não tinham propriedade – participassem da condução do governo mediante eleição de seus representantes.

Talvez baseados nos filósofos e historiadores da Antiguidade, que abominavam a democracia eleitoral, recomendando o que Thomas Jefferson, lembrando Aristóteles, denominou a “aristocracia do talento”; ou prevendo que demagogos insuflariam as massas a fim de extinguir o direito de propriedade na Inglaterra, Cromwell e seu grupo defenderam “a necessidade prática de reservar o exercício da autoridade política a ‘homens de interesse fixo no reino’ ” – daí a property qualification para o sufrágio. Tal exigência evitaria conflitos internos e, como Cromwell e seus defensores sabiam por experiência, mais uma guerra civil.

Para os Levellers, portanto, estabilidade constitucional e institucional era essencialmente “uma questão ética ou moral baseada no conceito de direito natural”.

Outros participantes dos debates, percebendo o atributo radical da teoria do direito natural, chamaram aos debates um conceito revolucionário – o da autopropriedade (self-ownership), a ideia de que o direito de propriedade “física” emana dessa propriedade originária que o ser tem sobre seu corpo e mente, e que deve ser defendido, como diria Hayek mais tarde, “com o sacrifício máximo, se necessário”.

VEJA TAMBÉM:

Os Levellers, apesar de sua esperança de que o voto nas urnas resolveria a questão política daquela guerra, merecem estudo porque estabeleceram princípios relativos à origem e dissolução do governo, propriedade, direitos e liberdade

Ao defenderem princípios éticos – e não remendos de curto prazo – os Levellers superaram a posição, embora compreensível, de Cromwell.

No que concerne à natureza e função do governo, deixaram para a posteridade o preceito de que “qualquer governo – não apenas o do Rei Carlos I – é injusto [e deve ser deposto] se ele limita o direito natural do ser humano de buscar seus objetivos naturais” por meios éticos.

Apesar de sua fé ingênua em eleições como solução para problemas políticos, “os Levellers tinham por objetivo a proteção do direito do ser humano de viver uma vida plena sem obstáculos”.

Desse modo, aponta Gleissner, eles “contribuíram para a formulação da ampla plataforma liberal do povo britânico, tão essencial à geração posterior que surgiu nas colônias britânicas da América do Norte.

O direito natural justificou seu otimismo quanto ao desejo natural dos indivíduos de consumarem suas potencialidades, tornando-se mais plenamente humanos”.

José Stelle é Ph.D. em Estudos Internacionais (Filosofia, Política e Economia) pela Universidade de Buckingham, Reino Unido. É também autor de O estado de direito: constitucionalismo, democracia e o futuro da nação (Chiado, 2019), arranjo de suas 18 palestras na Universidade Fudan, Xangai, China, em 2013; e de Por uma nova carta: mensagem à nação brasileira (Armada, 2022). Seu livro O bom governo da república virá a lume no final deste ano. 

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.