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“Três caminhos levam à sabedoria: o primeiro, pela reflexão, que é o mais elevado; o segundo, pela imitação, que é o mais simples; e o terceiro, pela experiência, que é o mais doloroso” é uma frase atribuída a Confúcio. Há já alguns anos, sobretudo nos países ocidentais, mas não só, governos e gestores públicos têm manifestado uma crescente desconfiança em relação a uma instituição cultural chinesa denominada Instituto Confúcio, desconfiança que levou e tem levado muitos deles a restringir a ação da instituição e mesmo a bani-la de seus territórios. Para os que não o conhecem, o Instituto é um braço cultural do Partido Comunista Chinês, encarregado prioritariamente de propagar a língua mandarim e de divulgar os valores da cultura chinesa – a tradicional, em alguma medida, mas sobretudo aquela que carrega os modernos valores do Partido –, o tal “soft power”.
Inaugurado em 2004, na Coreia do Sul, o Instituto Confúcio alcançou a sua máxima expansão em 2018, quando mantinha 548 unidades em mais de uma centena de países. De lá para cá, duas coisas ocorreram: o Instituto, acusado de censurar e impor restrições à liberdade acadêmica, passou por uma forte redução nos Estados Unidos e na Europa, mas, concomitantemente, expandiu-se na África e na Ásia, mantendo-se estável na América Latina, com o Brasil sempre à frente em número de representações: dez centros em 2018, quatorze em 2025. As razões que levaram à sua redução em países como Canadá, Austrália, Alemanha, Suécia, França, EUA e tantos outros são bastante conhecidas, inclusive no Brasil, onde alguns veículos de imprensa dedicaram ótimas matérias ao embrolho. A história é simples e, desde 2010, repete-se de país para país, de universidade para universidade.
De que modo explicar para o pagador de impostos brasileiro, por exemplo, que instituições promotoras de cursos, palestras, rodas de conversa e manifestações voltadas para a denúncia do 'massacre palestino' – alguns eventos flertando com o antissemitismo – permaneçam completamente alheias ao massacre dos uigures ou à repressão aos tibetanos?
Os EUA constituem, sem dúvida, um caso exemplar: entre 2010 e 2022, quase todos as 118 unidades do Instituto Confúcio que operavam no país tiveram suas portas cerradas. As razões? Os institutos receberam reiteradas acusações de impor censura sistemática a tópicos sensíveis ao Partido Comunista Chinês (PCC), como os protestos de Tiananmen, a independência de Taiwan, a repressão aos uigures e tibetanos, as restrições às populações LGBT, o combate ao feminismo e tantos outros. A Universidade de Indiana, em 2019, e a de Maryland, em 2020, destacaram, em relatórios dirigidos ao Senado americano, uma danosa “interferência na liberdade acadêmica”. Diversos órgãos do governo americano levaram as acusações mais longe e apontaram que muitos institutos roubavam propriedade intelectual e atuavam como biombos para ações de espionagem e de inteligência.
O Canadá seguiu trilha parecida, encerrando diversas unidades do Instituto Confúcio sob acusações similares: a Universidade McMaster (2013) revoltou-se, entre outras coisas, com a exigência de promover a visão do PCC sobre o Tibete; o Toronto District School Board (2014), o maior conselho escolar do país e um dos maiores da América do Norte, suspendeu a sua parceria com o Instituto em razão da excessiva politização do material didático que este utilizava. Ocorrências análogas tiveram lugar na Austrália, na Bélgica, na França, na Alemanha, na Holanda, na Suécia, no Japão e, mais recentemente, em agosto de 2025, no Reino Unido, onde o think tank UK-China Transparency (UKCT) denunciou que estudantes chineses instalados no país estavam sendo pressionados por autoridades do PCC a espionar colegas e a suprimir das discussões acadêmicas os tais temas sensíveis ao governo de Pequim, contribuindo para gerar um clima de medo e censura no meio universitário.
Por aqui, no gigante dos trópicos, são quatorze os Institutos Confúcio operantes, todos instalados no interior de universidades (públicas e privadas) e todos, apesar das promessas de expansão para outras áreas e de uma ou outra colaboração mais singular, centrados no ensino do mandarim, na concessão de bolsas de estudos e na promoção de cursos, palestras e exposições, tudo voltado para a celebração da língua, da cultura e dos valores chineses – ou melhor, já que se trata de um órgão estatal de um país de partido único, dos valores do Partido Comunista Chinês. O modus operandi parece também ser o mesmo daquele adotado em outros países, o mesmo que gerou inúmeras críticas e tantos problemas causou ao Instituto.
As semelhanças, no entanto, param aí. Ao contrário do que ocorreu e vem ocorrendo pelo mundo afora, no Brasil, malgrado os muitos alertas externos e internos relativos a um eventual comprometimento da liberdade acadêmica e aos inconvenientes gerados pela excessiva dependência econômica dos chineses, nem os órgãos governamentais, nem as quatorze universidades conveniadas enxergaram até agora qualquer problema na atuação do Instituto Confúcio. O representante de uma delas salientou, inclusive, que, em terras brasileiras, o Instituto atua simplesmente como uma plataforma de intercâmbios e não interfere minimamente na soberania acadêmica: “Não há metas específicas estabelecidas pelo Hanban para seus parceiros brasileiros, além do básico – a difusão da língua e da cultura chinesas".
Ora, ainda que se tome por verdade o que diz o representante universitário, isto é, que a atuação do Instituto na América Latina é descomprometida e transparente e que os itens centrais dos tais acordos, os mesmos que geraram polêmicas no exterior, não constituem um claro exercício de soft power, resta ainda um grande problema: como conciliar o espírito woke que caracteriza muitas das políticas adotadas pelas universidades conveniadas, sempre críticas à opressão e à exclusão aqui e no mundo, com o que defende e pratica o governo de Pequim em seu território?
De que modo explicar para o pagador de impostos brasileiro, por exemplo, que instituições promotoras de cursos, palestras, rodas de conversa e manifestações voltadas para a denúncia do “massacre palestino” – alguns eventos flertando com o antissemitismo – permaneçam completamente alheias ao massacre dos uigures ou à repressão aos tibetanos? E a política de inclusão LGBT, motivo de grande orgulho de uma parcela significativa das universidades conveniadas: as mesmas estão confortáveis com a política dos três nãos – “não aprovação, não reprovação, não promoção” – defendida pelo PCC e com a repressão velada que o Estado impõe aos ativistas do movimento? Não mereceria uma manifestação de repúdio, indignação ou, ao menos, de preocupação?
Os embaraços relativos aos direitos das mulheres e às questões de gênero não são menores. Há uma penca de agências internacionais, entre as quais a UN Women e a UNICEF, que consideram preocupante a perseguição movida pelas autoridades chinesas contra o embrionário movimento feminista do país – algumas ativistas foram presas sob alegação de incitar a “subversão do poder estatal”; preocupante, igualmente, é a violência contra a mulher em certas regiões da China, sobretudo no meio rural, e a vista grossa que fazem as autoridades para o problema. E ainda mais inquietante, segundo as mesmas organizações internacionais, é a política de valorização e promoção da “família tradicional chinesa”, política que reifica a visão da mulher como “esposa e mãe” e posterga a sua emancipação. Os empoderados reitores e reitoras das universidades brasileiras, tão ciosos dos direitos da mulher e das questões de gênero, estão em paz com as posições do parceiro chinês? É-lhes indiferente o que se passa com as mulheres no distante Império do Meio?
De que modo explicar, por fim, ao pagador de impostos de um dos países com a maior população de origem africana do mundo – origem exaltada nas disciplinas decoloniais das grades dos cursos de humanas das universidades conveniadas – que o parceiro cultural da vez, o Instituto Confúcio, tem uma relação extremamente ambígua com os povos originários da África subsaariana, onde a bandeira da cooperação sul-sul, hasteada para consumo externo, contrasta com os inúmeros estereótipos de negros que circulam despudoradamente pela sociedade chinesa, entre os quais: que são “avessos ao trabalho”, “demasiado sexualizados” e “pouco ordeiros”, incapazes, pois, de se adaptar a uma sociedade trabalhadora e plácida como a chinesa. Os decolonialistas tupiniquins não se interessam por tema tão pungente? Nenhum deles enxerga aí relevância suficiente para inspirar ao menos um modesto ensaio sobre racismo estrutural?
As respostas para questões tão espinhosas não são lá muito fáceis de serem formuladas e, por vezes, o melhor mesmo é deixar tudo quieto. Pode-se sempre, é claro, recorrer ao clássico: os acordos não passam por aí e, tradicionalmente, não metemos o nariz em questões internas de outros países. Todavia, pululam críticas aos países ocidentais e a Israel nas universidades e ninguém nunca se lembrou de tal cordialidade diplomática. Pode-se também alegar que o mundo se equivoca e que nada do que se diz sobre o estimado parceiro soa verossímil. O argumento não é novo e, de tão gasto e ineficaz, já se tornou o que, ironicamente, se costuma denominar “uma aposta contra o real”; no entanto, em situações mais tensas, é sempre possível recorrer a ele. Pode-se, ainda, no extremo, alegar que as pautas woke não são levadas tão a sério pelos adultos das universidades ao ponto de a sua defesa comprometer parcerias internacionais regadas a bolsas e a passagens aéreas, que tais pautas são destinadas somente ao consumo interno e ao atendimento de modas passageiras; mas ninguém numa universidade, daqui ou de outro lugar qualquer do mundo ocidental, diria tais coisas.
Jean Marcel Carvalho França é professor titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista, “Visões do Rio de Janeiro Colonial”, “Mulheres Viajantes no Brasil”, “Andanças pelo Brasil colonial”, “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII”, “Piratas no Brasil“ e “Ilustres Ordinários do Brasil”.



