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Israel, Irã e o mundo: com quantas guerras se constrói uma paz?   

Protestos contra o Hamas, como este realizado em março, têm se tornado mais comuns em Gaza (Foto: EFE/Ahmad Awal)

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No início dos anos 80, eu fazia um mestrado sobre economia de desenvolvimento urbano na Universidade de Londres quando, surpreso, descobri que havia dois grupos que nunca se falavam: os estudantes iranianos contra e a favor do regime dos aiatolás. Os estudantes que fugiram do Irã estavam refugiados em Londres, e os representantes do governo do Irã foram enviados à cidade para estudar e servir ao novo regime. O diálogo entre eles era impossível - havia uma guerra entre eles.

Muitas décadas depois, em 2015, já trabalhando na ONU em Nova York, fui convidado pelo governo iraniano para ajudá-los a melhorar a oferta digital de serviços públicos nas áreas de planejamento, habitação, transporte etc. Fui muito bem recebido em Teerã pelas autoridades que lidavam com os serviços digitais do governo, incluindo a preparação de um seminário para altos funcionários de todos os ministérios, com o objetivo de melhorar sua coordenação interna via digital. Vejam bem: não fui debater paz no Oriente Médio – nem poderia. Eu sabia que eles não tinham interesse em minhas opiniões pessoais.

Na abertura do seminário, o auditório do Ministério da Informação e Tecnologia das Comunicações em Teerã estava lotado com altos funcionários de 18 ministérios e agências do governo. Os homens usavam paletó cinza sem gravata, e as mulheres, hijab preto – uniforme das funcionárias públicas. No palco, cheio de flores, um grande slide com uma mensagem: “Welcome, Mr. Jonas Rabinovitch”.

Comecei a palestra me apresentando: “Nasci no Rio de Janeiro, tive uma infância muito infeliz porque sempre fui um péssimo jogador de futebol... vocês sabem como é triste para um menino brasileiro ser um mau jogador de futebol?”. Notei os sorrisos da plateia: eles foram relaxando e depois fizeram muitas perguntas.

Essa Terceira Guerra Mundial não declarada tende a se expandir – mas, por enquanto, sem o perigo de armas nucleares nas mãos do atual regime iraniano, graças aos EUA e a Israel. O mundo deveria agradecer

Olhei fundo nos olhos daquelas pessoas, fui recebido dignamente. O governo enviou uma carta para a ONU elogiando meu trabalho. Por outro lado, vi em Teerã um imenso mural mostrando as bandeiras dos EUA e de Israel sendo incendiadas, junto com o chamado para a destruição desses países. Não é muito comum que, em pleno século XXI, um país exalte publicamente seu desejo de destruir outro. Fiquei com uma impressão paradoxal do Irã: um povo tão articulado, amigo, hospitaleiro – mas, ao mesmo tempo, prisioneiro de uma ditadura extremista. Conheço vários países assim.

O Irã era um país moderno, avançado e ocidentalizado. Em 1979, houve a Revolução Iraniana, guerra que levou à derrubada da monarquia e ao estabelecimento de uma República Islâmica. O que começou como um movimento autêntico e antiditatorial, baseado numa ampla coligação de várias forças, foi rapidamente transformado numa tomada de poder pelo fundamentalismo islâmico. No início de março de 1979, Khomeini, o primeiro aiatolá, anunciou: "Não usem o termo 'democracia'. Esse é o estilo ocidental".

O Irã não reconhece a existência de Israel, visto como uma pedra no babuche deles por ser a única democracia no Oriente Médio. O Irã xiita também tem (ou tinha) ambições expansionistas de exportar sua revolução islâmica, o que deixa a Arábia Saudita e outros países sunitas da região apreensivos. Enquanto o Irã já enforcou 5.000 homens gays, segundo a Anistia Internacional, Israel organiza em Tel-Aviv a maior parada LGBT da Ásia e Oriente Médio. Este ano não houve parada LGBT porque centenas de mísseis iranianos choviam sobre Israel, e todos estavam em abrigos. Em 2022, a morte da jovem Mahsa Amini chocou o mundo: ela morreu após ser detida e espancada por violar a lei do hijab, ou seja, por mostrar seus cabelos em público. Apenas em 2024, pelo menos 618 mulheres foram presas sob o Plano "Noor" (Luz), que intensificou a aplicação da lei do hijab a partir de abril de 2024. Esse é o regime que o governo brasileiro, de esquerda, apoia no momento. Um governo perde sua legitimidade representativa quando permite que fidelidades ideológicas vergonhosamente se sobreponham a valores básicos de dignidade humana.

Na madrugada do dia 24 de junho, o gabinete do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu anunciou um cessar-fogo na guerra com o Irã. Por quê? Israel bateu vários recordes militares ao dominar o espaço aéreo do Irã em apenas três dias – o que a Rússia não conseguiu fazer na Ucrânia em três anos. Israel, um país fisicamente 75 vezes menor que o Irã, conseguiu eliminar a elite dos comandantes militares, a elite dos cientistas nucleares e destruiu a infraestrutura de produção de ogivas nucleares e mísseis balísticos do Irã em questão de dias. Israel ainda eliminou comandantes da Guarda Revolucionária responsáveis por financiar o terrorismo do Hamas, Hezbollah e Houthis, entre outros. Israel destruiu prédios vitais para o funcionamento da estrutura de opressão do regime iraniano.

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Então, por que Israel não termina o trabalho agora e acaba de vez com o regime iraniano, o qual jurou destruir Israel? E por que China e Rússia tiveram uma reação tão branda frente aos ataques dos EUA e Israel ao território de seu aliado iraniano? Nunca saberemos ao certo, mas tenho quase certeza de que há a mesma resposta para essas duas perguntas.

É possível que Trump tenha telefonado para Putin e Xi Jinping antes de atacar os reatores nucleares iranianos em Fordow, Natanz e Isfahan. Eles sabem que ninguém faz uma usina a 90 metros de profundidade apenas para gerar energia com intenções pacíficas. Portanto, é possível que tanto a China como a Rússia tenham concordado que o Irã estaria de fato construindo ogivas nucleares – o que desencadearia uma guerra nuclear global.

Para quem não sabe, desde 1970 a paz relativa do planeta se baseia em grande parte na doutrina internacionalmente aceita da “Destruição Mútua Assegurada” (MAD, ou Mutually Assured Destruction). Isso significa que qualquer ataque com armas nucleares levaria à aniquilação completa de todos os lados em caso de guerra, o que garante esse tipo de paz que temos hoje.

O Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) foi ratificado em 1970 por 190 países. Esses países são categorizados em dois grupos: países com armas nucleares e países sem armas nucleares. Os cinco com armas nucleares são Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido. Não por coincidência, esses cinco países são os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, mas, paradoxalmente, estão entre os maiores exportadores de armas convencionais.

Os demais países, incluindo o Irã, se comprometeram a não adquirir armas nucleares. Quatro países nunca aderiram ao tratado: Índia, Israel, Paquistão e Sudão do Sul. A Coreia do Norte aderiu, mas posteriormente se retirou em 2003. Índia e Paquistão possuem armas nucleares e não assinaram o tratado por causa disso. O Sudão do Sul é uma nação relativamente nova, fundada em 2011, e tem enfrentado guerras civis internas desde sua independência. Israel nunca negou ou admitiu possuir armas nucleares e mantém essa posição ambígua como segredo de Estado.

E por que o Brasil apoia o regime ditatorial do Irã? Rompendo décadas de uma tradição diplomática, o Brasil ideologicamente se coloca como aliado da China e da Rússia, tendo se posicionado contra os EUA e, por tabela, contra os valores defendidos por Israel e pelo Ocidente. Caberia ao Congresso Nacional questionar e tentar entender isso. O Brasil, tradicional aliado de Israel, desenvolveu no atual governo uma narrativa contra Israel que é antidemocrática. O Brasil, país de imigrantes, sempre se afirmou como um berço de paz, onde árabes e judeus tradicionalmente convivem em harmonia. Lamento muito que nosso país agora se transforme em aliado do ódio antissemita ao apoiar um regime que persegue mulheres, LGBTs, entre outros – por sinal, uma política que contradiz abertamente os valores defendidos pela esquerda. Quero ressaltar três pontos:

Israel não atacou o Irã — apenas reagiu de forma exclusivamente militar a 40 anos de ameaças concretas por parte da ditadura iraniana. Tudo isso sem atacar a população civil iraniana, que é inocente. O Irã, ao contrário, ataca prédios residenciais e hospitais em Israel.

“Mas Israel não atacou hospitais em Gaza?” Não. Israel atacou “hospitais” em Gaza que serviam de fachada para instalações terroristas do Hamas.

“Mas Israel não faz um genocídio em Gaza?” Não. Segundo a ONU, a definição de genocídio inclui a “destruição deliberada e sistemática de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. A população de Gaza em 1950 era estimada em 63.444 habitantes. Em 1990, havia crescido para 645.100 habitantes. Em 2005, Israel espontaneamente devolveu Gaza para os palestinos. O Hamas tomou o poder em 2007, matando palestinos mais moderados da Autoridade Palestina, que controla a Cisjordânia (Judéia e Samaria). Em 2020, a população estimada de Gaza atingiu 2,1 milhões – os quais são reféns e massa de manobra do Hamas. Que “genocídio” é esse em que a população só cresce? O Ministério da Saúde em Gaza, operado pelo Hamas, não distingue entre civis e combatentes palestinos e tem sido criticado por manipular dados.

Que fique claro: o Tribunal Internacional de Justiça é um órgão da ONU que resolve disputas jurídicas entre Estados, e não concluiu que Israel teria cometido genocídio em Gaza – apenas listou medidas preventivas para que isso fosse evitado. Qualquer manifestação nesse sentido é, portanto, falsa e motivada politicamente.

Concluindo: a luta entre os EUA, China e Rússia para ampliar suas esferas de influência continua. China e Rússia defendem modelos de desenvolvimento totalmente diferentes dos EUA e da Europa, questionando a hegemonia econômica e o modus vivendi das democracias ocidentais como principal resultado da Segunda Guerra Mundial. Essa Terceira Guerra Mundial não declarada tende a se expandir – mas, por enquanto, sem o perigo de armas nucleares nas mãos do atual regime iraniano, graças aos EUA e a Israel. O mundo deveria agradecer.

Quanto ao futuro do Irã, isso vai depender dos iranianos. Espero que seja dirigido por pessoas decentes, como os bons profissionais que encontrei em Teerã – e não pelos radicais extremistas dispostos a condenar e até matar mulheres apenas por deixar de cobrir seus cabelos.

Jonas Rabinovitch é arquiteto urbanista com 30 anos de experiência como Conselheiro Sênior em inovação, gestão pública e desenvolvimento urbano da ONU em Nova York. 

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