A Rio+20 mal tinha começado e já era uma decepção do ponto de vista ambiental. Uma decepção esperada: em época de crise, é improvável que qualquer Estado se comprometa a fazer sacrifícios pelo meio ambiente. O ponto mais polêmico, contudo, e que tem causado mais celeuma, nada tem a ver com a natureza. O rascunho do acordo oficial divulgado nesta semana é produto de deliberações entre delegações oficiais e ONGs. Originalmente, ele fazia menção aos "direitos reprodutivos" das mulheres, mas a versão final menciona apenas a "saúde reprodutiva". As expressões podem parecer equivalentes, mas os iniciados na linguagem diplomática mundial sabem que a primeira conota direito ao aborto e a segunda, não.
Grupos feministas não gostaram da mudança e foram à mídia. No entanto, em vez de se discutir os méritos da questão (que é, enfim, a descriminalização do aborto), o foco foi dado a um fato tangencial: a pressão pela mudança teria vindo do Vaticano. Isso não é estritamente verdadeiro: embora o Vaticano seja contrário à cláusula dos "direitos reprodutivos", a pressão veio também de países não católicos (como a Rússia) e até não cristãos (como o Egito). Por que, então, o foco no Vaticano? Porque falar nele faz soar um alarme: "violação do Estado laico". E isso interessa ao movimento pela legalização do aborto, que quer deixar implícito que a posição contrária à sua é religiosa: o Brasil é um Estado laico, portanto...
Sendo uma questão de laicidade versus religião, dispensa-se até saber o que a maioria da população pensa. Pois, ainda que a maioria rejeite a liberação irrestrita do aborto, se essa rejeição for religiosa, então ela não deveria figurar em nossas leis. O que se evita discutir é a premissa inicial: será que a posição é religiosa?
Sim, é verdade que o catolicismo e outras religiões, como o islã e o espiritismo, são contrários ao aborto. Mas isso não nos diz se essa posição é, em si, necessariamente religiosa. Há uma grande diferença entre inspiração e dependência lógica. Um ideal pode ter, para uma pessoa, inspiração religiosa sem que sua defesa dependa de algum artigo de fé. Perguntemos aos cidadãos brasileiros por que matar é errado; é provável que a maioria dê uma crença religiosa ou espiritual como justificativa. Nem por isso deveríamos rejeitar a lei que proíbe o homicídio. Ela não fere a laicidade do Estado, pois há argumentos racionais perfeitamente laicos que a justificam.
Um Estado laico é um Estado em que "Deus quis" não é argumento político válido; todo religioso tem de se contentar com o fato de que não se pode erigir um ensinamento em lei meramente por constar na Bíblia, no Corão ou no Livro dos Espíritos. Mas, se os ensinamentos de uma religião forem defensáveis com argumentos que não dependam da religião, então nada deve impedir que sejam trazidos à discussão política, mesmo que por pessoas religiosas.
O aborto tem surgido cada vez mais no debate público; nenhum dos dois lados depende de um argumento religioso, embora possam ser inspirados por crenças religiosas (Edir Macedo, por exemplo, faz um argumento bíblico em favor da liberação do aborto). Para que esse debate tenha legitimidade, é preciso que ambos os lados sejam ouvidos; que cada um possa dar os melhores argumentos legais, sociais, éticos para sua posição. Que um dos lados tente desqualificar o outro na largada é uma tática desonesta e evidencia uma fé verdadeiramente dogmática no pior sentido do termo.
Joel Pinheiro, mestrando em Filosofia, é editor da revista cultural Dicta&Contradicta.



