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Na escolha de um nome, um Papa escolhe um gesto. E ao escolher chamar-se Leão XIV, o pontífice recém-eleito não apenas acena a um predecessor. Ele finca uma estaca doutrinal no chão instável do presente. Recoloca o timão da barca de Pedro na rota traçada por Leão XIII, o estrategista sereno do século XIX, cuja Rerum Novarum ainda ecoa como canto firme entre os ruídos das ideologias.
A Rerum Novarum não foi escrita para agradar partidos, mas para contrariar rótulos. Não é panfleto, é profecia. Ali, a Igreja rechaça tanto a dissolução da propriedade quanto a idolatria do mercado. Recusa o delírio igualitário dos socialistas, mas também denuncia o lucro que se alimenta da carne do operário. Numa época em que se exige que se escolha um lado da trincheira, Leão XIII levantou um altar.
Convém lembrar — ainda que escandalize os comentaristas de Twitter com crucifixo no perfil — que a Igreja nunca foi progressista, nem conservadora. Ela é Católica, Apostólica e Romana. A fé que instituiu hospitais e universidades, que moldou leis e línguas, não se curva a hashtags. Sua missão é eterna: salvar almas. E a salvação, para horror dos especialistas, não se submete a consensos editoriais.
Ao invocar a Rerum Novarum, Leão XIV não comete anacronismo — comete fidelidade. Atualiza sem submeter. Atualiza como quem rega a raiz, não como quem pinta a folha. É a tradição em sua forma mais viva, mais perigosa, mais revolucionária.
A tradição, quando verdadeira, não é repetição do passado, mas é coragem de não trair o que não muda
Aos que sussurram, com ar progressista de seminário da ONU, que o novo Papa se alinha “à esquerda”, talvez caiba uma pergunta mais simples: em que parte da Doutrina Social da Igreja está escrito que combater a injustiça é exclusividade de quem veste vermelho? E mais: em que catecismo consta que justiça social se faz relativizando a Verdade?
A Igreja não canoniza a pobreza, nem excomunga a riqueza. Canoniza a virtude e excomunga o egoísmo. O Catecismo é explícito: “a propriedade de bens é legítima para garantir a liberdade e a dignidade das pessoas” (§2402). Não se trata de possuir ou não possuir, mas de ser livre diante da posse. O problema nunca foi o ouro — foi o bezerro.
Há quem leia desigualdade como heresia. A Igreja, ao contrário, a lê com os olhos do bom samaritano: o problema não é haver diferenças, mas ignorar o que sofre. Cristo não pediu um comitê de redistribuição de talentos — pediu compaixão. Ele amou o jovem rico e acolheu Zaqueu, o convertido. E, ao que consta, não exigiu declaração de imposto para sentar à mesa.
Nesse ponto, talvez devamos admitir que parte do clero moderno sofre da síndrome do intelectual da moda: encantam-se mais com seminários sobre “inclusão” do que com a confissão. Trocam o púlpito pelo palanque. E esquecem que a caridade cristã não precisa de pauta identitária para ser urgente.
A referência a Rerum Novarum é, pois, um gesto que incomoda. Porque, ao invés de repetir chavões, ela aponta a essência. Justiça enraizada na Verdade. Caridade sem conivência com o erro. Tradição que não fossiliza — floresce. A Igreja, afinal, não é ONG com missa, mas o Corpo de Cristo. Sua teologia é soteriológica, não sociológica. A missão permanece: salus animarum.
Chesterton observou que “o mundo moderno está cheio de [supostas] ideias cristãs enlouquecidas”; Hitchens, que “é preciso uma convicção tremenda para contrariar tantas certezas vazias”. Leão XIV parece responder a ambos. Sereno e irrevogável.
Rafael Corradi Nogueira é cientista político, consultor institucional e articulista. Escreve sobre política, sociedade e religião, com especial atenção aos pontos de encontro entre fé, cultura e razão pública.
Conteúdo editado por: Aline Menezes



