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É notável como a morte do leão Cecil, no Zimbábue, gerou farta discussão mundo afora. Uma prática legalmente aceita em muitos dos países da África, a “caça por troféu” é controversa e suscita reação de milhões, inclusive no Brasil.

Os argumentos de sobrepopulações de espécies, com áreas cada vez mais limitadas, não são suficientes para arrefecer a determinação dos que querem a punição exemplar do tal dentista. Nem alegar que os recursos pagos por esses tipos têm por finalidade colaborar na geração de renda local e na conservação de áreas naturais é suficiente para permitir a racionalização de um ato tão vil.

De fato, para a maioria, não importa se há muitos leões para poucas áreas selvagens. Ou se há suficiente recurso para proteger essas reservas. O pensamento quase unânime é de que não se pode admitir que animais sejam mortos por quem paga por isso. Trata-se, para muitos, de prática imoral em que aflora a irracionalidade do ser humano.

O tema é controverso. E merece ser explorado mais a fundo, uma vez que a indisposição de tantas pessoas deveria suscitar um avanço mais concreto para a proteção dos animais selvagens. Cabe refletir sobre o que ocorre na prática nas últimas áreas naturais lá na África – e, também, por aqui.

A indisposição de tantas pessoas deveria suscitar um avanço mais concreto para a proteção dos animais selvagens

Um exemplo é o dos grandes predadores africanos, em que o aumento de uma espécie é incompatível com a limitada extensão das áreas de conservação, causando restrições de acesso ao alimento. Nesses casos, a ausência de intervenção, em geral decorrente de falta de recursos, acarreta condição de instabilidade em que filhotes são devorados por adultos.

Pelo Brasil afora, se formos para o campo das ilegalidades dos desmatamentos e da destruição criminosa de áreas naturais em todo o território, dificilmente alguém relacionará esses fatos com a liquidação da biodiversidade existente nesses locais. Soma-se o amplo e indiscriminado uso de pesticidas, que contaminam ambientes naturais. Bem como o atropelamento de milhões de animais todos os anos, por falta de educação e de melhor sinalização e estrutura das rodovias.

É inconteste que uma política que sustenta a ocorrência da corrupção nas licenças ambientais e a frouxidão da fiscalização, somada à conivência da população com essa realidade, dizima de maneira implacável e contínua leões-baios, jacutingas, pacas, antas, catetos, tatus e tudo o mais.

Além disso, a “caça de subsistência” é completamente descontrolada. De certa forma aceita pela sociedade, conflita com lei federal que proíbe essa prática. E deveria ser de conhecimento mais amplo que as técnicas de captura e morte de animais silvestres são extremamente contestáveis.

Laços, estoques e armas de fogo matam aos poucos ou aleijam milhares de animais todos os dias. Uma busca por carne que, em boa parte, hoje acaba sendo direcionada para a venda e não para a subsistência. Uma realidade que parece estar mais distante se comparada ao caso do leão do Zimbábue, lá no outro continente.

Aqui, não existem os pagadores por troféus. Quem os deseja infringe a lei sem cerimônia. E não existem estruturas em condições adequadas para assumir a conservação de áreas naturais e a nossa fauna e flora, dizimadas por crimes que ainda são tratados como consequência do desenvolvimento. Ou como necessidade irremediável dos que sobrevivem nas últimas áreas naturais.

Em ambos os casos, uma incongruência fática. E quase nada fazemos a esse respeito. Como aceitar que situações assim continuem ocorrendo?

Quando um leão acaba morto de maneira equivocada, por um dentista sem alma, nos insultamos com reações de grande amplitude. Realmente uma demonstração de afeto para com a natureza, embora distante e descompromissada com o que de muito pior ocorre bem debaixo de nosso nariz.

Clóvis Borges é diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS).
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