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No Natal de 1947, poucos anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, um jovem religioso holandês publicou um artigo que se tornaria decisivo para a história da solidariedade cristã no pós-guerra. Em No Room at the Inn (Sem lugar na hospedaria), o então padre Werenfried van Straaten chamou a atenção para o drama de milhões de pessoas expulsas de suas casas na Europa devastada, vivendo como deslocados e refugiados em seu próprio continente.
Inspirado pelo Evangelho do Natal, Werenfried recordava que o Menino nascido sem abrigo continuava presente em todos aqueles que, em cada época, não encontram lugar onde repousar. Seu apelo levou milhares de famílias a partilharem o pouco que tinham com pessoas igualmente marcadas pela guerra. Aquele gesto daria origem à obra que hoje o mundo conhece como ACN.
A cada gesto de solidariedade, a cada voz que se levanta em defesa da liberdade religiosa, a cada pessoa disposta a abrir espaço para quem foi forçado a partir, a hospedaria se amplia. E o Natal acontece outra vez
Quase oito décadas depois, as páginas do Relatório de Liberdade Religiosa no Mundo 2025, publicado pela ACN, mostram que o drama do deslocamento humano permanece profundamente ligado à perseguição e à discriminação religiosa. O relatório documenta que, em dezenas de países, comunidades inteiras são submetidas a violência, repressão estatal ou hostilidade social por causa de sua fé. Em muitos desses contextos, a consequência direta é o deslocamento forçado, seja dentro do próprio país, seja através das fronteiras.
Na África, no Oriente Médio e em várias partes da Ásia, o relatório apresenta casos concretos de comunidades religiosas obrigadas a abandonar suas aldeias, cidades e locais de culto devido ao extremismo violento, a conflitos armados com componente religioso ou à repressão promovida por regimes autoritários. Nas Américas, embora o fenômeno se manifeste de forma diversa, o relatório também registra situações em que a perseguição religiosa contribui para o exílio forçado de líderes e fiéis.
Esses deslocamentos não são apenas efeitos colaterais da instabilidade. Eles revelam, com clareza, o impacto humano da negação de um direito fundamental: a liberdade de consciência e de crença – de crer, de não crer e de viver a própria fé sem medo. Quando esse direito é violado, a perda da casa, da terra e da comunidade torna-se, para muitos, uma dolorosa realidade. O deslocamento deixa de ser uma escolha e passa a ser uma condição de sobrevivência.
Mas o Natal também ensina que a rejeição não tem a última palavra. Em 1947, Pe. Werenfried acreditou que a caridade podia reconstruir pontes onde só havia ruínas – e a história lhe deu razão. O Relatório de Liberdade Religiosa no Mundo 2025 confirma que, ainda hoje, milhares de pessoas e comunidades continuam a abrir espaço, acolher, sustentar e permanecer ao lado de quem sofre por causa da fé.
Neste Natal, a pergunta do primeiro presépio continua a ecoar – haverá lugar na hospedaria? – mas a resposta também se renova. A cada gesto de solidariedade, a cada voz que se levanta em defesa da liberdade religiosa, a cada pessoa disposta a abrir espaço para quem foi forçado a partir, a hospedaria se amplia. E o Natal acontece outra vez. Feliz Natal!
Ana Manente é presidente da ACN Brasil, entidade católica que atua em regiões de conflito e perseguição religiosa.



