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“Frente Ampla” foi o slogan marqueteiro que serviu de verniz para a união de forças políticas e sociais em torno de um candidato, Lula, que, embora velho conhecido do eleitorado, nada oferecia além da retórica de defesa de uma suposta democracia ameaçada. Curiosamente, esse apelo vinha justamente de quem, junto a seu partido, protagonizou alguns dos maiores escândalos de corrupção da história recente do Brasil – episódios que corroeram as instituições por dentro, com compra de votos no Congresso, loteamento da máquina pública e desvios bilionários de estatais, como nos casos notórios do mensalão e do petrolão.
Tratou-se, portanto, de uma narrativa enganosa – uma cilada para ingênuos (ou cúmplices) que se deixaram convencer de que estavam “do lado certo da história”, quando, na verdade, contribuíam para restaurar um projeto de poder responsável por fragilizar a própria democracia que diziam defender.
É assim, sustentado por antagonismos artificiais e um discurso reciclado, que um governo esvaziado de ideias tenta sobreviver. Mas seu prazo político já parece ter vencido
Era previsível que o terceiro mandato de Lula seria problemático. O que poucos anteciparam foi a intensidade do revanchismo, a obsessão por vingança, a tentativa desenfreada de reabilitar velhos companheiros tidos como “injustiçados” e a determinação em desmontar políticas de austeridade e modernização do Estado – medidas que, entre 2016 e 2022, ajudaram a recolocar o país nos trilhos. A agenda de retrocesso confirma o que muitos temiam: o retorno de um modelo de poder centrado no Estado, avesso à eficiência, e hostil ao setor produtivo.
Como este artigo não se propõe a ser excessivamente extenso, concentraremos a análise em algumas medidas emblemáticas – e recicladas – recentemente adotadas pelo governo. Trata-se da reutilização de programas antigos, impregnados por uma lógica assistencialista, que há muito deixaram de oferecer respostas estruturantes aos problemas sociais. Com um governo composto majoritariamente por quadros ultrapassados e desprovido de ideias inovadoras, a saída foi reembalar o velho como se fosse novo.
Exemplos não faltam: a reformulação do Bolsa Família, o relançamento do Minha Casa Minha Vida, o retorno do Vale Gás, a criação do Pé de Meia e, mais recentemente, a promessa de gratuidade na conta de luz. Embora a assistência aos mais vulneráveis seja uma necessidade legítima, o que se vê é a repetição da fórmula populista: distribuir benefícios sem avaliação concreta de impacto, sem metas claras e, sobretudo, sem políticas de emancipação que ofereçam uma rota de saída para os beneficiários.
Em vez disso, despejam-se bilhões em programas embalados por slogans de efeito – como o recente "o pobre voltou ao orçamento" – que, na prática, pouco contribuem para romper o ciclo de dependência e estagnação social.
No campo econômico, a hostilidade ao capital privado remete ao Lula sindicalista do fim dos anos 1970, empoleirado em palanques e repetindo refrões contra o "mercado". Soma-se a esse ranço ideológico um ressentimento visível por ter sido, segundo ele próprio, “abandonado” pelos agentes econômicos após deixar o poder. Essa combinação resultou em uma série de medidas que revelam desconfiança crônica com a livre iniciativa e um esforço deliberado de reestatização.
Entre os exemplos mais emblemáticos, estão: a tentativa de retomar o controle da Eletrobras; o cancelamento do programa de desinvestimentos da Petrobras; o uso político da estatal para direcionar investimentos — como no retorno às fábricas de fertilizantes; a exclusão dos Correios, notoriamente deficitários, do programa de privatizações; e as sucessivas tentativas de ingerência sobre a Vale. Some-se a isso a ofensiva para enfraquecer a Lei das Estatais, voltando com as indicações políticas em empresas com participação da União, além da investida – por ora frustrada – contra o novo marco regulatório do saneamento básico.
Do ponto de vista fiscal, o cenário não é menos preocupante. A sanha arrecadatória e a aversão sistemática a cortes de gastos vêm asfixiando, dia após dia, empresas e trabalhadores. Ao contrário dos tempos áureos de seus primeiros mandatos – quando surfava a onda da valorização das commodities impulsionada pela demanda chinesa –, o atual governo não conta com a mesma bonança externa. Ainda assim, insiste em praticar generosidade com o dinheiro alheio e reage com indignação sempre que instado a fazer o dever de casa.
O resultado dessa equação é a substituição do Teto de Gastos por um chamado “Arcabouço Fiscal” que, na prática, falha em cumprir o papel de âncora das contas públicas. Trata-se de um regime complacente, que prioriza a expansão da despesa em detrimento do ajuste necessário. A consequência imediata dessa política é a manutenção de um dos juros reais mais altos do mundo – em torno de 10% – e uma taxa Selic persistentemente elevada. Tal configuração, além de encarecer o crédito e desestimular investimentos produtivos, contribui para a explosão da dívida pública, cuja trajetória, segundo estimativas, pode alcançar 100% do PIB até 2030.
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Em resumo, trata-se de um projeto de poder que vê no Estado o agente exclusivo da transformação social, mesmo que à custa da eficiência, da responsabilidade fiscal e da confiança de quem produz e investe no país.
Na seara das relações exteriores, a tendência de estar sistematicamente ao lado errado da história não deveria surpreender aqueles que, sob o pretexto de defender a democracia, decidiram apoiar o atual governo. O antiamericanismo pueril – traço característico da velha esquerda latino-americana – marcou os dois primeiros mandatos de Lula e, como era de se esperar, dá o tom também no terceiro.
Logo de início, chama atenção a insistência em relativizar a agressão russa à Ucrânia, atribuindo à própria vítima uma parcela de responsabilidade pelo conflito – uma inversão moral que beira o cinismo. Israel, por sua vez, recebe a pecha de “nação genocida”, enquanto ao Irã – um regime teocrático que persegue minorias e ameaça a estabilidade regional – são reservadas palavras de solidariedade, inclusive após os ataques cirúrgicos dos Estados Unidos às suas instalações nucleares subterrâneas.
Não bastasse, o governo brasileiro segue prestando reverência a regimes autoritários do continente, como Nicarágua, Cuba e Venezuela, cujos líderes são tratados como companheiros ideológicos, e não como os autocratas que efetivamente são. Em suma, uma política externa marcada por alinhamentos anacrônicos, escolhas diplomáticas questionáveis e uma disposição desconcertante de dar as costas a democracias consolidadas para flertar com ditaduras em ruínas.
Esse é o retrato atual – ou, mais precisamente, um fragmento de um filme mais longo – de um governo que não governa. Uma administração paralisada, sustentada por uma base congressual artificial e instável, que sofre derrotas semanais, ora por articulação deficiente, ora por absoluta falta de rumo. Um governo que apanha sistematicamente dos presidentes das Casas Legislativas e da oposição (felizmente), que tem conseguido impor derrotas relevantes ao Palácio do Planalto.
Enquanto isso, o próprio governo revela-se incapaz de apresentar ideias novas, desarticulado na comunicação, alheio às transformações nas dinâmicas do trabalho e surdo ao clamor por autonomia, inovação e valorização do empreendedor – marcas de uma sociedade cada vez mais exausta com o gigantismo do Estado e o desperdício de recursos públicos.
Nada poderia ser mais sintomático da obsolescência dessa gestão do que o retorno ao velho e desgastado discurso do “nós contra eles”: de um lado, Lula, o PT e “o povo”; de outro, as elites, a classe média “odiosa”, o centro político e a direita – todos empacotados em um inimigo comum e imaginário.
É assim, sustentado por antagonismos artificiais e um discurso reciclado, que um governo esvaziado de ideias tenta sobreviver. Mas seu prazo político já parece ter vencido. E 2027, longe de ser um ano de reconstrução, será, na melhor das hipóteses, um ano de construção do zero – porque, nos quatro anos anteriores, nada de concreto se construiu.
Wesley Reis é economista
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



