Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Artigo

Mario Vargas Llosa: entre o gume da realidade e o fogo da imaginação

Escritor peruano Mario Vargas Llosa, que morreu em Lima neste domingo. (Foto: EFE/Francisco Guasco ARCHIVO)

Ouça este conteúdo

Mario Vargas Llosa foi um homem que decidiu viver entre o gume da realidade e o fogo da imaginação; e, mais que isso, aceitou sangrar entre os dois. Tão cortante quanto necessário, tão ardente quanto lúcido. Quando o conheci, digo, quando conheci sua escrita, eu não lia um autor. Eu descobria mundos, uma sucessão de lugares alinhavados com a destreza de um alfaiate peruano que costurava ternos ingleses em plena umidade equatorial. Llosa tinha algo que me fascinava de cara: escrevia com as entranhas de um romancista e o juízo de um homem público; e, ainda assim, conseguia não trair nem um nem outro.

Há escritores que admiramos. Outros, que nos formam. Llosa fez parte disso: da formação e da deformação, aquela que só a literatura é capaz de provocar. Escrevo esse texto em 14 de abril de 2025. Mario Vargas Llosa morreu… alguma coisa em mim também.​ A ideia é batida, a frase é clichê, mas minha perda é íntima. Parece que alguém com quem conversei a vida inteira resolveu partir de vez sem se despedir.​

Há quem resuma Llosa ao rótulo sempre preguiçoso de “liberal”. Não sabem que o peruano que nos deu A Casa Verde, Conversa na Catedral, A Guerra do Fim do Mundo, Pantaleão e as visitadoras, Cinco esquinas, A cidade e os cachorros, O Herói Discreto e tantos outros é, antes de tudo, um cético apaixonado. Llosa não era homem de trincheira; era homem de claraboia. Por isso mesmo, quando escolheu falar de política, o fez como um literato que não renunciou ao ofício de pensar. Foi candidato à Presidência do Peru e perdeu. Mas é justamente na derrota que alguns se tornam maiores. Vargas Llosa, ao recusar os atalhos fáceis e os populismos travestidos de virtude, me ensinou — e segue ensinando — que a liberdade é sempre uma aposta de risco, jamais um slogan de vitrine.

Nunca houve, em sua literatura, espaço para o didatismo disfarçado de lirismo. Ele não nos entrega personagens para amar ou odiar, mas para contemplar e compreender. Ao compreendê-los, somos obrigados a ver o que há em nós do que há neles. É desconfortável, claro. É por isso que Conversa na Catedral ainda me persegue. Porque naquela Lima apodrecida, opaca, burocrática, decrépita, ele traçou uma das mais poderosas anatomias da impotência política latino-americana. Onde foi que nos perdemos? Quando foi que começamos a crer que nada, absolutamente nada, vale a pena? “Em que momento o Peru tinha se fodido?”, pergunta icônica que é também uma confissão: nós nos fodemos junto com ele.

Admirá-lo foi fácil. Llosa permaneceu em sua ilha; e essa ilha, ironicamente, é feita de liberdade. Pode-se não concordar com ele, mas é preciso reconhecê-lo: não é desses que se dobram ao vento da conveniência. Por isso continua relevante

Llosa sempre teve esse talento para escancarar as vísceras políticas do continente sem perder a ternura narrativa. Em A Festa do Bode, talvez seu romance mais ácido, entrega uma aula de literatura histórica sem ceder um centímetro ao panfletário. A trama se desenrola como um dossiê emocional. Trujillo não é apenas um ditador: é a epítome da corrupção moral que assola o poder quando se torna absoluto. Llosa não exime ninguém, nem a vítima que se corrompe para sobreviver, nem o espectador que silencia para não ser o próximo. É literatura, sim, mas é também autópsia.

E que ninguém se engane: esse homem é mais do que um escritor de fôlego enciclopédico. É um pensador que não se acovardou no momento em que muitos de sua geração se renderam ao canto de sereia das utopias autoritárias. Enquanto tantos se enamoravam por revoluções que prometiam o paraíso à custa da liberdade, Llosa seguiu um outro caminho, mais espinhoso, mais solitário, mais complexo. Não foi visto bradando slogans, mas sim oferecendo argumentos ponderados. Como poucos, teve coragem de mudar de ideia. Recusou-se a ser refém da juventude intelectual, dessa que se gaba de sua primeira convicção como se fosse medalha de caráter. Llosa preferiu amadurecer. Ousou, inclusive, defender o que virou palavra suja na boca dos grandes círculos intelectuais e artísticos: o mercado, o indivíduo, a democracia liberal. E fez isso sem escamotear contradições, sem fingir pureza ideológica.

Mario Vargas Llosa não foi apenas um dos maiores escritores do nosso tempo; foi também um pensador liberal convicto. Em seu livro O chamado da tribo, Llosa traça sua trajetória intelectual do marxismo ao liberalismo, influenciado por pensadores como Adam Smith, Friedrich Hayek, José Ortega y Gasset e Karl Popper. Ele defendia que a liberdade individual e a democracia liberal são fundamentais para o progresso das sociedades. Em seus artigos, Llosa criticava o autoritarismo e o populismo, destacando a importância de instituições sólidas e do Estado de Direito para garantir a liberdade e a justiça social.

Além de romancista, foi um cronista incansável da vida pública contemporânea. Por décadas, Llosa fez de sua coluna semanal Piedra de toque no El País um ponto de vigília. Não escrevia para agradar, mas para deixar claro onde estava. Textos, marcados por uma prosa clara e elegante, orbitando sempre um núcleo irredutível: a defesa da democracia liberal, da liberdade individual e do Estado de Direito. Llosa fazia da coluna um espaço para resistir ao populismo (tanto de esquerda quanto de direita), à degradação das instituições republicanas e ao relativismo cultural que, em sua visão, ameaçava a civilização democrática ocidental. Era um liberal convicto. Sabia que a liberdade se mede menos no discurso e mais na estrutura das instituições. Defendia o Estado de Direito sem catequese. E quando falava de cultura, falava como quem sabe que o romance também pode descambar a ser trincheira. Mas pode ser abrigo e, ao menos eventualmente, um bico de luz. Seus textos, mesmo os mais políticos, carregavam a marca de quem ainda acreditava que a linguagem era o último território da razão. Assinei por anos El País, porque a leitura desses artigos me era essencial para compreender o escritor em sua totalidade, não apenas como ficcionista genial, mas como intelectual engajado que não se calava diante dos retrocessos da história.

VEJA TAMBÉM:

Admirá-lo foi fácil. Llosa permaneceu em sua ilha; e essa ilha, ironicamente, é feita de liberdade. Pode-se não concordar com ele, mas é preciso reconhecê-lo: não é desses que se dobram ao vento da conveniência. Por isso continua relevante. Em um mundo de intelectuais de rede social, de pensadores adolescentes (mesmo aos 40, 50 anos), de rebanhos emocionais, Llosa ousou pensar crítica e profundamente.

Literariamente, o homem era um arquiteto. Construia seus romances com camadas, passagens temporais alternadas, múltiplos pontos de vista. Mas o que mais me impressiona é sua capacidade de fazer do banal uma epifania. Um encontro de bar, uma manhã nublada, uma lembrança na voz de um narrador que hesita: tudo isso vira acontecimento. Ele me ensinou que a alta literatura não está nos grandes feitos, mas na forma como conseguimos extrair deles suas rachaduras, seus silêncios, seus colapsos íntimos. Llosa entendia o ser humano porque não tentava consertá-lo. Compreensão típica do melhor conservadorismo filosófico.

Talvez por isso eu o tenha tomado como uma das referências fundantes do meu modo de olhar para a palavra e para o mundo. Llosa é, para mim, um norte moral e estético. Alguém que me ensinou que o escritor deve ser um vigilante, do poder, da linguagem e, talvez o mais importante, da própria vaidade. Um escritor que se cala por medo ou conveniência não é apenas um desertor da sua arte, é um cúmplice da mentira.

Quando alguém me pergunta por que ler Mario Vargas Llosa, costumo responder com simplicidade: para lembrar que o mundo é uma narrativa, e que precisamos escolher se seremos seus autores ou apenas personagens coadjuvantes em histórias escritas por outros. Llosa era esse sujeito que, mesmo ferido, escrevia. Que, mesmo contrariado, dizia. Que, mesmo solitário, insistia. Ainda que discordando dele em certos momentos, continuo reverenciando o seu gesto fundamental: o de pensar a liberdade como um valor inegociável, e a literatura como seu último refúgio.

Sim, Mario, você não é apenas um escritor. É um homem de ideias que ousou enfrentar as paixões baratas com a altivez da razão. Entre o gume da realidade e o fogo da imaginação, você escolheu não apagar o incêndio, mas também não incendiar por esporte. Assim, fez de si mesmo aquilo que poucos conseguem ser: um homem inteiro.

Marcos Pena Júnior é economista, filósofo e escritor; pesquisador em Filosofia Política, Economia, Literatura e Agronegócio; autor de “Do riso às lágrimas: poemas contra ressentimentos” (2021) e “Visagens nossas de cada dia: uma história da Independência” (2022).

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.