
Ouça este conteúdo
Minha filha não tinha três meses quando fomos ao shopping pela primeira vez, recém-egressos da fenda temporal de novidade, amor e cansaço conhecida por puerpério. Em busca de um vestido adequado à nova circunstância, entrei em uma loja chique enquanto o marido garantia o vaivém do carrinho com a bebê que, eu me lembrava, estava bem amamentada. De fora do provador, um resmungo baixinho interrompeu a distração. Subitamente, senti o calor, as fisgadas e o embaraço. Pedi um zilhão de desculpas pelo vestido sujo.
Eu já havia me surpreendido com o fenômeno na estreia. Tantos anos aspirando à maternidade, e nunca me ocorreu que eu pudesse sentir o leite. Menos ainda que meu corpo pudesse responder às necessidades da minha filha de forma tão imediata. Uma das inúmeras evidências deste laço tão primário, tão excepcional e insubstituível, que se descortina e se fortifica a cada dia, nas cerca de cinquenta e sete vezes que ouço a palavra “mamãe”.
Não pode ser coincidência que a fantasia desconstrucionista ganhe terreno em um mundo com cada vez menos mães: é muito difícil experimentar a maternidade sem esbarrar em suas contradições.
As leitoras que compartilham de experiências similares hão de compreender a premência – e, os demais, de me perdoar pela guinada –, mas é por exemplos como este que considero a maternidade, senão o único, um dos mais efetivos antídotos à balbúrdia pós-moderna que chamamos de “cultura woke”. Não pode ser coincidência que a fantasia desconstrucionista ganhe terreno em um mundo com cada vez menos mães: é muito, muito difícil experimentar a maternidade sem esbarrar em suas contradições.
Nem é preciso chegar à aberração de se tratar mães e mulheres por “corpos que menstruam”, “corpos que pariram” etc.: deixemos que o ridículo denuncie a si mesmo. Ocorre que, para que impropérios como este tomassem as redes sociais, houve que se naturalizar a máxima que jaz no cerne da cultura woke: primeiro, que nada há de estável, de objetivo ou real no ser humano. Que ser mulher ou mãe não é mais do que o resultado de uma sequência de arbitrariedades orquestradas pelo do patriarcado, esta entidade nascida para sufocar o único aspecto aceitável da existência corpórea: o prazer sexual.
O exemplo com o qual abri esta reflexão tem sua delicadeza. A realidade, as mães o sabem, é bem mais dramática. Gestação, parto, puerpério, os primeiros anos; cada qual com sua miríade de experiências indeléveis: manchas, cicatrizes, contrações, câimbras, enjoos, sono, insegurança, angústia, medo. (E, sim, claro, a imensurável ternura, os dentes cerrados diante de um par de bochechas, a embriaguez de ocitocina e a saudade do bebê que está logo ali, no colo da avó). Um coquetel poderoso a ponto de despertar ativistas aguerridas. Assim descreve a ensaísta Mary Harrington:
“Fui criada para acreditar em todas as crenças progressistas comuns sobre homens e mulheres. Como os seres humanos são todos amplamente iguais, exceto pelos genitais em diferentes formatos e alguma socialização (...). Como a paternidade, não apenas a maternidade, deveria ter um impacto igual em ambos os pais; como ter um filho seria apenas um contratempo em uma vida orientada principalmente para o mundo exterior.
Então, tive um bebê. É lugar-comum observar que a vida após a maternidade é diferente da anterior, (...) e uma parte disso incluiu ver minhas queridas crenças progressistas naufragando na realidade física de ser, não apenas um pai, mas especificamente uma mãe.”
VEJA TAMBÉM:
Que há em ser especificamente uma mãe? Certamente, não uma lista de tarefas oude características. Há mães artistas e mães empresárias, mães professoras, donas de casa. Cozinheiras de mão cheia, cantoras de chuveiro. Mães que não puderam amamentar ou que não puderam parir. Mães duronas e mães que choram em inauguração de supermercado (presente!), de muitos filhos ou de um só. Em comum, a experiência de gerar da própria vida, nas palavras recentes do Papa Francisco, “algo que antes não existia”. Algo visceral demais para ser desconstruído; tão completamente novo, que política identitária alguma dará conta de abraçar.
Talvez seja esta, aliás, a grande falácia contemporânea a ser demolida pela maternidade: a de que nossas identidades subsistem de forma desencarnada e virtual. Dizia o escritor G. K. Chesterton que a verdade não comporta contradições, mas paradoxos. Se, por um lado, a maternidade nos desperta para a implacável realidade do corpo, também o faz para o que de fato o ultrapassa: não as teorias, as ideias, o idílico “eu” liberto das amarras materiais, mas aquilo que somos e que sempre seremos – únicos e irrepetíveis -- no colo de uma mãe.
Maria Clara Vieira Rousseau é jornalista e mestranda em Ciências da Religião.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



