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Médicos preparados? Quando diploma não garante competência

A expansão desordenada dos cursos de Medicina ameaça a essência ética da profissão: sem prática real, não há médicos, só diplomas e checklists. (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

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A Medicina é, em sua essência, uma prática ética e humanizada que vai além de protocolos. Não basta associar sintomas a condutas; é preciso compreender a pessoa, integrar ciência e compaixão e exercer prudência diante de dilemas reais. Essa dimensão vem sendo ofuscada pela corrida por certificações e testes padronizados que, embora úteis em parte, arriscam reduzir a profissão a um checklist.

A filosofia da Medicina distingue dois saberes: episteme (conhecimento técnico-científico) e phronesis (sabedoria prática). É a phronesis que orienta a decisão correta para o bem-estar do paciente quando há várias respostas possíveis. Provas objetivas captam a primeira dimensão, mas escapam da segunda — justamente o núcleo ético do ato médico.

O quadro nacional: expansão sem lastro

Há uma explosão de cursos de Medicina: 390 ativos em 2024 e, atualmente, 448 unidades com 48.491 vagas, segundo CFM e MEC, sendo mais de 70% privados. Levantamento do CFM indica que 78% operam em municípios sem infraestrutura mínima — hospital de ensino, atenção primária adequada e leitos suficientes.

O déficit estimado é de 49 mil leitos do SUS nas cidades que sediam essas faculdades, o que inviabiliza experiências clínicas consistentes. Desde 2013, a abertura acelerada de vagas, muitas vezes sem campo de prática compatível, deslocou a formação para salas e simulações, com prejuízo do internato.

Em comparação, no Canadá há cerca de um hospital-escola para cada 1,2 cursos; no Brasil, um para cada seis — muitos já no limite da capacidade. O contraste é eloquente e preocupante.

O mito da avaliação única

O debate sobre qualidade tem se concentrado em exames nacionais, como o ENADE e, mais recentemente, o ENAMED. Embora forneçam indicadores, estão longe de garantir proficiência real.

Pesquisa publicada na Revista Médica de Minas Gerais aponta que mais de 65% dos estudantes consideram que tais provas não refletem o internato e as práticas. O risco é o “efeito checklist” — treinar para acertar questões sem preparar para o paciente real, com sua complexidade biológica, psicológica e social.

O debate legislativo e a “OAB da Medicina”

A Câmara aprovou urgência para o PL 785/2024 (autor: Dep. Dr. Luizinho, PP-RJ), que cria o Exame Nacional de Proficiência em Medicina, a chamada “OAB da Medicina”. Se aprovado, exigirá aprovação prévia para o exercício profissional.

A proposta, apoiada por entidades como o CFM, busca responder à expansão desordenada de cursos e reforçar a segurança do paciente. Qualquer exame deve contemplar habilidades práticas, comunicação clínica e julgamento ético, sob pena de se tornar mera barreira burocrática.

Como professor universitário por muitos anos, médico e ex-conselheiro do CRM, reconheço a necessidade de aferir competências, mas entendo que medir apenas o conhecimento teórico ignora a essência prática e ética da Medicina. Avaliar é necessário; confundir avaliação com gabarito é erro com consequências na vida do paciente.

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Há vinte anos, meu estado contava com uma escola de referência, vinculada a hospital universitário, e campo de prática sólido. Hoje, multiplicam-se cursos privados em cidades sem hospital-escola e com rede hospitalar insuficiente para internatos robustos.

Essa “propositura involutiva” — expansão quantitativa com retrocesso qualitativo — produz formandos com pouca vivência clínica, escassez de preceptores experientes e falta de estágios especializados. É preciso reorganizar a oferta e concentrar a formação onde houver estrutura, para que o estudante aprenda com pacientes reais e o cidadão seja bem atendido.

A urgência de reconectar técnica e vocação

A formação médica exige contato real com o sofrimento humano, a frustração terapêutica e o compromisso com a vida em todas as fases. Isso demanda revisar currículos fragmentados, fortalecer a preceptoria e resgatar a cultura do hospital-escola como centro do ensino. Além de provas, é necessário padronizar avaliações práticas (OSCE) e ampliar o acompanhamento clínico, criando padrões nacionais ancorados no SUS.

A proficiência não deve ser filtro punitivo pós-formatura, mas compromisso contínuo. O desafio é alinhar qualidade, ética e competência desde o ingresso até a prática, sem erguer barreiras burocráticas sem efeito assistencial. É hora de priorizar infraestrutura formativa, supervisionar de fato os cursos e integrar ensino e serviço.

Excelência como compromisso público

A sociedade tem o direito de esperar médicos capazes de decidir com prudência, agir com empatia e honrar o juramento hipocrático. Isso não nasce apenas de diplomas ou de aprovação em exames, mas de uma formação ancorada na ética, na experiência real e na integração entre conhecimento e sabedoria prática.

Defender a verdadeira proficiência — à beira do leito, no plantão, diante das incertezas — não é ideologia; é responsabilidade civilizacional. É preservar a confiança médico- paciente e a própria dignidade da Medicina.

Dr. Luiz Ovando é Deputado Federal (PP/MS), Médico Clínico, Cardiologista e Geriatra.

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