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As medidas provisórias (MPs) foram incorporadas ao direito brasileiro pela Constituição de 1988. Pretendeu, o constituinte, distanciar-se do decreto-lei do regime militar, importando instrumento normativo já conhecido pelos regimes parlamentaristas de italianos e espanhóis. Em terras brasileiras, verificou-se uma inflação das medidas provisórias, diante do pouco cuidado na redação do artigo 62 da Lei Fundamental e do controle judicial tímido em relação aos pressupostos de relevância e urgência autorizadores da edição da medida. O abuso das normativas provisórias, algumas delas reeditadas dezenas de vezes, trouxe quadro de insegurança jurídica inadmissível em um Estado de Direito.

Por meio da Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001 (fatídica data), após ampla negociação, o Congresso Nacional operou mudanças no texto constitucional, a fim de restringir o uso das MPs a circunstâncias realmente excepcionais. Com efeito, a emenda trouxe diversas disposições, como (i) matérias insuscetíveis de tratamento pela normativa de urgência, (ii) maior prazo de vigência (de 30 para 60 dias), (iii) proibição da reedição, embora possa haver uma prorrogação, (iv) manifestação prévia do Congresso acerca dos pressupostos constitucionais de edição da medida, e (v) parecer de Comissão Mista antes da apreciação (não mais conjunta) das Casas. A reforma também trouxe solução a uma situação de insegurança, ao estabelecer que decreto legislativo (ou, caso não editado o decreto, a própria medida provisória) disciplinará as relações jurídicas nascidas sob a égide daquela que foi rejeitada ou perdeu eficácia. Ainda, para compelir o Congresso a apreciar a matéria, resolvendo sobre a rejeição da normativa extraordinária ou sua conversão em lei, o constituinte estabeleceu que "Se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando." Com essas alterações, imaginava-se um regime mais claro para as medidas provisórias, que prestigiasse a segurança jurídica e compelisse a atuação do Congresso.

Em relação à norma destacada, entendia-se que, após 45 dias da publicação do ato, todas as deliberações da Casa Legislativa ficariam sobrestadas até que se ultimasse a deliberação acerca da medida provisória. Porém, recentemente o presidente da Câmara dos Deputados sugeriu que apenas os projetos de lei ordinária (que não cuidem de matérias insuscetíveis de tratamento por MP) teriam sua apreciação sobrestada. Em relação a todas as demais proposições (como projetos de emenda à Constituição, de lei complementar e de resoluções, por exemplo) poderia o Legislativo deliberar, mesmo havendo medida provisória pendente de apreciação, pois sobre tais conteúdos não poderia o Executivo dispor por meio de medida extraordinária.

Sustentou-se que referida interpretação homenagearia o princípio da separação dos poderes e, ainda mais, a igualdade entre os poderes proclamada pelo texto constitucional. Seria o entendimento extraído do sistema constitucional, mais inteligente do que a decorrente da simples disposição literal residente no § 6º do artigo 62 que vinha sendo aplicada desde 2001. A nova interpretação foi provisoriamente aceita pelo Supremo Tribunal Federal, ao indeferir medida liminar postulada em mandado de segurança impetrado por parlamentares irresignados com o sentido atribuído à norma constitucional. O mérito da interpretação ainda aguarda enfrentamento.

O que propõe o deputado Michel Temer é operar uma mutação da prática constitucional. Todavia, trata-se de uma mutação inconstitucional da Lei Fundamental. Cumpre reafirmar que a Constituição estabelece que, superados 45 dias da publicação sem apreciação da medida provisória, ficarão sobrestadas todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando. Sabe-se que o limite da interpretação é o texto. Assim, se o texto reporta-se a todas as demais deliberações, não se pode ler apenas algumas. A ideia é o mesmo exigir que o Executivo utilize a medida provisória com parcimônia, sempre após exaustivas negociações com o Legislativo.

Não há exceção, no texto constitucional, ao sobrestamento da pauta; tampouco o princípio da separação dos poderes permite interpretação nesse sentido. O regime das medidas provisórias afirmado pela EC nº 32 compõe a arquitetura da separação dos poderes, sugerindo diálogo, debate e persuasão, ou seja, harmonia entre Legislativo e Executivo. Não há subordinação do Legislativo ao Executivo, mas apenas um ônus caso não se aprecie a MP no prazo fixado. Aliás, é preciso que se diga que a interpretação sugerida pelo deputado agrada ao Executivo, que vê a pauta do Legislativo desimpedida para apreciar projetos de seu interesse (considerando que a maioria dos projetos de lei são provenientes do Executivo). A nova interpretação, portanto, não atende aos interesses do Legislativo (que continuará não apreciando as medidas provisórias no prazo determinado), mas antes àqueles da maioria (governo e base de apoio no Congresso). O número de medidas provisórias, com essa nova interpretação, certamente aumentará.

A EC nº 32 pretendeu inaugurar um regime para as medidas provisórias que contasse com maior cooperação e diálogo entre os Poderes. Todavia, isso não vem acontecendo, e o abuso de medidas continua. O controle da pauta (agenda) do Congresso tem residido nas mãos do Executivo, que paga um preço por isso. A nova interpretação, festejada pelo governo e pela maioria, estimula ainda mais o uso da normativa extraordinária. O problema não está na Constituição, mas, antes, na omissão do Legislativo.

Uma eventual alteração do regime das medidas provisórias exigiria emenda constitucional, e não solução hermenêutica jeitosa. Talvez fosse o caso de, por meio de emenda, restringir ainda mais o uso da normativa extraordinária ou até mesmo, num futuro quadro de maturidade política, extingui-la. Porém, enquanto viger o artigo 62 da Lei Fundamental nos moldes em que se apresenta, nenhuma solução jurídica poderá, sem artificialismo, impedir o sobrestamento de todas as deliberações legislativas até que se ultime a votação da medida provisória dentro do prazo estipulado. Ao não estabelecer exceção alguma ao sobrestamento (diferente do que se observa no § 2º do art. 64), o constituinte estava como a dizer que, editada medida provisória, este instrumento gravíssimo e excepcional, o Congresso Nacional deve se reunir para, com absoluta precedência, oferecer resposta clara e urgente ao assunto. Esse é o papel que se imaginou para o Congresso, que, ao invés de soluções imaginativas, parece precisar de mais trabalho e liderança.

Clèmerson Merlin Clève é professor titular das Faculdades de Direito da UniBrasil e da UFPR e autor do livro Medidas Provisórias.

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