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Por meio de nossos sentidos, deparamo-nos com o mundo, com o real, e tentamos descrevê-lo; e o descrevemos através das palavras. Nossas descrições, por sua vez, servem para que o interpretemos e compreendamos, a nosso modo e tanto quanto possível. Logo, pode-se dizer que, a não ser pela linguagem, pelas palavras, não conseguimos compreendê-lo. O que é o real? Não saberemos senão através da linguagem. Isto é, não saberemos – ao menos não completamente.

É que a linguagem, essa magnífica invenção que possibilita ao mundo questionar a si próprio – uma vez que somos todos parte do mundo –, tem seus limites, de modo que a descrição que do mundo se faz não equivale ao mundo como ele é.

Primeiro, porque o mundo é essencialmente desordem, sem sentido e desestruturado. Já a linguagem se caracteriza justamente por buscar ordenar, estruturar e atribuir algum sentido a esse ambiente caótico. A ordem sistematizada pela linguagem é menos complexa que a desordem do real e, por isso, inevitavelmente insuficiente para descrevê-la. “Sempre restará no dito o mudo, / o por dizer, / já que não é da linguagem / dizer tudo”, já dizia Ferreira Gullar.

Segundo, porque a linguagem não é uma entidade objetiva e atemporal, mas, pelo contrário, essencialmente intersubjetiva e historicamente determinada. Não há uma só linguagem, mas várias, tanto quanto há formas de vida, todas com o mesmo fim de descrever o mundo tal como ele é. Logo, haverá uma irredutível margem de arbitrariedade e contingência em toda interpretação.

Pretensos líderes defendem soluções simplistas e demagogas para problemas naturalmente complexos

Obviamente, não é possível pensar sem utilizar a linguagem. Por isso, também não haverá pensamento que não seja temporal e histórico. Em suma, não há um pensamento único e abstrato, e todo pensamento é limitado. Muito provavelmente, alguém que admita essas premissas dialogará consigo mesmo da seguinte maneira: “a minha interpretação ou perspectiva não é única, e é bem possível que ela nem sequer seja a melhor dentre as existentes. Há outras que podem ser igualmente válidas, com as quais posso aprender alguma coisa. Também é possível que eu discorde delas, mas isso não significará, necessariamente, que elas são erradas ou menos válidas do que a minha. Afinal, também a minha interpretação tem a sua dose de vinculação às minhas experiências, às coisas que aprendi e, finalmente, à perspectiva a partir da qual observo o mundo. Por isso, em vez de subjugá-las à interpretação que considero correta, devo respeitá-las e, se possível, buscar um aprendizado recíproco”.

Assumi-las significa assumir um imperativo de tolerância e, possivelmente, de alteridade. Significa, em primeiro lugar, reconhecer-nos como interlocutores incapazes de conhecer absolutamente e que, portanto, estamos, a qualquer tempo, suscetíveis ao erro. Em segundo lugar, significa reconhecer o outro como igual, em toda a sua individualidade e com uma dignidade própria: não como alguém a quem ensinar o que entendemos por verdades objetivas, mas com quem sempre é possível aprender.

Tudo isso tem sido frequentemente ignorado, não obstante, e o mundo tem vivenciado um pesadelo terrivelmente delicado, assombrado por três fantasmas principais: ódio, intolerância e violência. Para percebê-lo, basta atentar para os vários candidatos a líderes políticos que, ao redor do globo, têm crescido de modo exponencial graças a discursos que, crentes de portarem a única e objetiva possibilidade de conhecer e descrever a realidade e aquilo que definem como seus principais problemas e virtudes, destilam o ódio contra grupos, etnias, formas de vida e classes sociais diversas, não raro sem se limitar a exigir o silenciamento de suas vozes, para que a verdade lhes seja transmitida, mas também o seu sofrimento físico. É como se a dignidade não existisse no outro, no diferente ou mesmo naquele que pensa e interpreta o mundo de modo diferente. O que importa, no fim das contas, é o aniquilamento de sua moral – e, com isso, o seu aniquilamento moral.

É o caso de Donald Trump, provável candidato à presidência dos Estados Unidos pelo Partido Republicano. Trump tem, entre suas propostas, a absoluta proibição da entrada de muçulmanos no país e a construção de um muro na fronteira com o México, uma vez que os mexicanos, segundo ele, não seriam senão fornecedores de drogas ilícitas, transmissores de doenças contagiosas e os principais responsáveis pelo aumento da criminalidade no país. Trump tem a sua caricatura brasileira em Jair Bolsonaro (PSC), que, além de se referir aos refugiados sírios como “a escória do mundo” e de declarar que não teria um filho homossexual porque o “educaria”, chegou, em sessão extraordinária da Câmara dos Deputados assistida por todo o país, a prestar uma patética e lamentável homenagem à tortura sofrida por Dilma Rousseff durante o período da ditadura militar brasileira. Com isso, deixou uma mensagem tão clara quanto repugnante: aqueles cujas ideias abominamos não merecem nada que seja inferior ao sofrimento.

É claro que o caso brasileiro não se limita a Bolsonaro. Há, além dele, inúmeros congressistas, como Marco Feliciano (PSC), que, atribuindo-se a condição de intérpretes máximos de Deus, procuram impor a todos os demais um discurso único e, por isso mesmo, excludente e intolerante.

Existem, é verdade, diferenças entre tais pretensos líderes, mas as semelhanças são mais evidentes: todos se veem como portadores de uma verdade atemporal, neutra, não “ideológica”, a ser necessariamente divulgada e, se necessário, imposta, de modo violento, a todos. Interpretações diversas seriam mera “ideologia”, objeto de doutrinação. Não há, contudo, pensamento que não seja ideológico, como bem advertiu Contardo Calligaris, em excelente coluna publicada na Folha de S.Paulo algum tempo atrás.

Não é uma mera coincidência que tais pretensos líderes defendam soluções simplistas e demagogas para problemas naturalmente complexos. Para Trump, os problemas do terrorismo se resumiriam à existência de muçulmanos; para Bolsonaro, a criminalidade persistiria até hoje principalmente porque “a polícia mata pouco”. Ambos são, de fato, autênticos populistas. Nem poderia ser diferente. Afinal, eles nem sequer reconhecem a complexidade do mundo, limitando-o e definindo-o de acordo com o que a sua interpretação, cega pela intolerância, dele consegue perceber.

O pensamento único é conceitualmente contrário à democracia, caracterizada pelo livre diálogo entre ideias tão diferentes quanto contraditórias e, por isso, o único sistema capaz de se adequar minimamente à complexidade e à desordem do real. Uma vez pregada a existência de um pensamento e uma interpretação únicos, no entanto, para que serviriam o diálogo e o confronto sadio de interpretações? É fácil perceber que não sobraria espaço para a tolerância, nem mesmo enquanto ideal, num ambiente como esse. A prevalecerem, tais discursos farão mais uma vítima, além daquelas cotidianamente afetadas pelo pesadelo da intolerância: a própria democracia e o ambiente de tolerância que ela idealiza. Esse perigo não pode ser ignorado.

André Felipe Portugal é advogado e mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra (Portugal).
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