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Não é ideologia, é poder: a lógica que domina a política

O primeiro-ministro indiano Narendra Modi em encontro com o presidente russo Vladimir Putin e o presidente chinês Xi Jinping no Centro de Convenções Meijiang, em Tianjin, China, em 1º de setembro de 2025. (Foto: Michael Klimentyev/EFE/SPUTNIK POOL/KREMLIN)

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É difícil mensurar, mas é muito provável que muitas pessoas votem em um partido principalmente porque são contra outro ou outros, quase visceralmente. Não porque entendam, concordem ou discordem de uma ideologia. Entre outras razões, porque as ideologias já desapareceram há muito tempo.

Houve um tempo em que as ações políticas eram ideológicas. Na realidade, apesar de ostentarem o morfema ideo, as ideologias tinham pouco a ver com ideias e muito com meias-verdades, paixões e, em casos extremos, ódio. No entanto, no cerne das ideologias estavam princípios, e esses princípios tinham algo a ver com a ética.

É claro que a possibilidade de operar com princípios mutáveis, de acordo com a conveniência, sempre esteve presente. Balzac mencionou isso no personagem Vautrin, do romance Pai Goriot: “Não há princípios, apenas acontecimentos; não há leis, apenas circunstâncias. O homem superior une acontecimentos e circunstâncias para poder manipulá-los. Se houvesse princípios e leis fixos, os povos não os mudariam como nós trocamos de camisa.” Em outro romance, Pais e Filhos, de Ivan Turguêniev, o jovem Bazárov, que se declara “niilista”, diz: “Princípios não existem, apenas sensações existem! E tudo depende delas.”

Refiro-me a tudo isso no passado porque, embora existam resquícios, o que prevalece agora tem pouco a ver com ideologia. A fraseologia ideológica continua sendo usada nas batalhas políticas em escala nacional, mas no mundo como um todo, e em cada país, a lógica predominante é a do poder.

Isso ficou evidente, se é que fosse necessário, desde a segunda vitória de Trump. Qual é a sua ideologia? O que significa “republicano”? Sua ideologia são seus caprichos e seus negócios, as oportunidades que o poder lhe proporciona. Sua vontade alterou o cenário mundial.

Trump, Xi Jinping e Putin poderiam chegar a um acordo para dividir influência no mundo. Não por ideologias semelhantes (em princípio, seriam opostas: um liberal-conservador; outro, leninista-capitalista; outro, ex-comunista nacionalista), mas por causa da dura realidade do poder. Porém, Xi Jinping considera mais conveniente chegar a um entendimento com Putin e firmar um acordo com Modi, na Índia.

O que sofre quando a lógica do poder prevalece é a liberdade. Não a liberdade em abstrato, mas a liberdade individual. Se isso não se torna mais evidente, deve-se à possibilidade, já apontada por Alexis de Tocqueville no primeiro terço do século XIX, de muitas pessoas, mais ou menos conscientemente, aceitarem uma situação de menor liberdade em troca de maior segurança. É o que, já no século XVI, Étienne de La Boétie chamava de “servidão voluntária”.

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Se há algo que incomoda o poder, é a necessidade de compartilhá-lo. E se há algo em que ele se empenha diariamente, é em aumentá-lo. Aqueles que detêm o poder, independentemente de como o adquiram, passam a acreditar que essa é a sua natureza: nasceram para governar. Essa é a lógica das ditaduras. Mas, mesmo em uma democracia, é possível apegar-se ao poder mudando de princípios sempre que conveniente.

A tragédia de tudo isso é que o indivíduo isolado quase nada pode fazer para se defender. Precisa de mediação, e foi assim que nasceram os partidos políticos. Mas dentro dos partidos a lógica do poder também opera, e tudo pode acabar dependendo da vontade de um só.

A conjunção planetária Putin–Xi Jinping–Modi é o resultado de algo sempre latente, a que Maquiavel se referiu séculos atrás: ignorar o dever ético: “Há uma diferença tão grande entre como se vive e como se deveria viver que aquele que abandona o que se faz pelo que se deve fazer caminha para a ruína em vez de se beneficiar, pois um homem que em todos os lugares busque professar o bem inevitavelmente se perderá entre tantos que não o são.”

Para não perder a esperança, podemos acrescentar que as palavras de Maquiavel valem para situações políticas, para os mecanismos do poder. Pessoas comuns e honestas, que são mais do que parecem, podem atender ao dever-ser, praticando o bem ao seu redor.

Tapando o nariz enquanto o fedor da pizza de três queijos se espalha — a saber, Putin, Xi Jinping e Modi, este último aliado de ditaduras, ao mesmo tempo em que se gaba de a Índia ser a maior democracia do mundo, procurando esconder o fato de que o antinatural sistema de castas ainda vigora em grande parte do vasto Estado.

©2025 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: No es la ideología, es el poder

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