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Ronald H. Coase (1910-2013), britânico Nobel de Economia, afirmou que “se você torturar os dados por tempo suficiente, eles confessarão qualquer coisa”. Ainda que cheio de jocosa ironia, a frase tem muita verdade contida: não é difícil encontrarmos argumentos que citam números para transmitir informações falsas. Mais chocante, no entanto, é termos de ver afirmações pueris que ignoram completamente dados claros sendo levadas a sério. Isso ocorre com o “argumento” de que os números de mortes por Covid-19 no Brasil estão inflados.
Entre os pontos elencados por quem defende isso, o que alegam como fato fundamental é que, mesmo quando pessoas morrem de causa diferente, os atestados de óbito registrariam “Covid-19”. Isso estaria ocorrendo porque cada morte por Covid-19 geraria aos governos estaduais R$ 19 mil pagos pelo governo federal. Apesar de a informação já ter sido checada e desmentida, a fúria das redes sociais permanece “torturando esse dado”. A intenção no presente texto não é tratar dessa questão, mas de algo mais básico e mais óbvio: se uma ampla fraude sobre as mortes estivesse ocorrendo, teríamos de ver alterações nos números totais de óbitos no país e também em relação às outras causas. Aliás, faz parte do conjunto de “argumentos” desses torturadores o “ninguém morre mais de câncer ou de coração no Brasil”.
O Ministério da Saúde publica em seu site as estatísticas de mortalidade. Basta acessar e checar alguns números. Sendo assim, é possível identificar se há algo de estranho com o total e com as causas de mortes no país.
Numa população ainda crescente e em envelhecimento, é natural que também aumentem os números absolutos de mortes. Analisando os dados do Ministério da Saúde desde 2000, constata-se que esse tem sido o padrão. Excetuando 2005, no qual morreram 17.246 pessoas a menos que no ano anterior, em todos os demais observam-se valores crescentes. Numa média simples, entre 2000 e 2019 houve aumento de 21 mil mortes a cada ano. O máximo crescimento se deu em 2016, quando foram registradas 1.309.774 mortes, 45.599 a mais que em 2015. Mas vejamos o que ocorreu em 2020: temos um total de 1.531.525 falecimentos no país; são 181.724 adicionais em relação ao ano anterior. Isso significa praticamente quatro vezes aquele pico de 2016. Algum palpite sobre o fato que gerou isso?
O Ministério da Saúde confirmou 194.949 óbitos por Covid-19 até 31 de dezembro de 2020 no Brasil. Foram 1.531.525 mortes no país no ano passado, das quais praticamente 195 mil decorrentes do vírus pandêmico, e algumas pessoas têm a indigna ingenuidade de dizer “ninguém morre mais de outra coisa no Brasil”. Quando consideramos as medidas de distanciamento e isolamento adotadas já a partir de fevereiro do ano passado, enxergamos que muitas atividades que acarretam doenças e mortes foram reduzidas. Com a forte restrição de circulação, reduziu-se a contaminação por diversas fontes, por exemplo. Outras questões também precisam estar em conta, como: a redução do número de gravidezes, uma vez que “Algumas afecções originadas no período perinatal” e “Malformação congênita, deformidades e anomalias cromossômicas” são dois grandes grupos de causas de falecimento que reduziram em 2020 (em relação a 2019); a maior propensão de pessoas afetadas por doenças diferentes a contrair e a falecer por Covid-19, as quais, sem a pandemia, faleceriam de “Doenças do aparelho respiratório”, por exemplo.
Vamos tomar em conta que, caso não houvesse surgido o Sars-CoV-2, deveríamos ter observado em 2020, pela média das duas décadas precedentes, 21 mil óbitos a mais que em 2019. Fazendo uma conta de padaria (e sem considerar alterações nas causas em função da pandemia), pode-se considerar que 160.724 mortes adicionais surgiram “do nada” em 2020 (181.724 do total adicional do ano, subtraídos os 21 mil da média de acréscimo anual). Algo mais precisa ser dito?
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É possível que nossos “guerreiros da teoria da conspiração do pagamento por mortes” afirmem que essa “diferença” de aproximadamente 34 mil (194.949 óbitos por Covid-19 de 2020 menos o número da nossa “conta de padaria”) comprova a tese de que “ninguém morre mais de câncer ou de coração no Brasil”. Em 2020 a principal causa de morte no país seguiu sendo “Doenças do aparelho circulatório” (347.484 óbitos registrados); tivemos ainda 223.843 falecimentos por “Neoplasias (tumores)”, coerente com os dados dos anos anteriores.
Como estamos em julho e os dados disponíveis para o ano trazem até maio, é cedo para afirmar algo similar sobre 2021. De toda forma, registrou-se 102.411 mortes por “Doenças do aparelho circulatório”, 67.204 por “Neoplasias (tumores)” e 39.892 por “Causas externas de morbidade e mortalidade” até 31 de maio. Com 267.842 óbitos por Covid-19 computados entre 1.º de janeiro e 31 de maio de 2021, realmente, parece que ninguém mais morre de outra coisa no Brasil!
Marcos Pena Jr. é economista e escritor.





