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A bem da verdade, e por mais rígida que seja a resposta constitucional, fato é que a Constituição é uma dama frágil, que merece todo o nosso constante carinho e res­peito

De tempos em tempos, um de nossos vizinhos latino-americanos torna-se manchete dos jornais, nem sempre devido a boas notícias. Desta vez a novidade vem da América central: houve golpe em Honduras. No dia 28 de junho, depuseram o presidente e o despacharam de pijamas para a Costa Rica. Dos EUA à Venezuela (passando pelo Brasil), a reação beira a unanimidade: reinstale-se o Estado Democrático de Direito e garanta-se o exercício do poder político pelo representante eleito pelo povo. Mas há quem diga que não houve um golpe propriamente dito, mas sim o uso institucional de forças públicas a fim de assegurar o respeito à Constituição hondurenha. Afinal, o que de fato se passa em Honduras e em que isso pode se prestar a alguma reflexão de nossa parte?

Honduras é um dos países mais pobres da América Latina. Dois terços de sua população dedica-se à agricultura do café e da banana e 50% dela está abaixo da linha de pobreza. Célebre pela "guerra do futebol" com El Salvador em 1969, talvez a última vez que ocupou as primeiras páginas tenha sido em 1998, quando foi devastada pelo furacão Mitch. A atual Constituição de Honduras, promulgada em 1982 e submetida a várias reformas, é a que tem mais tempo de vida. Ao menos formalmente, é em torno dela que surge o embate político.

A Constituição hondurenha é firme em proibir qualquer tentativa de supressão da alternatividade no exercício da Presidência. Trata-se de "delito de traição à Pátria" (art. 4.º). Se quem propuser e quem apoiar qualquer reforma que autorize a renovação dos mandatos detiver cargo público "cessarão de imediato de desempenhar seus cargos respectivos e se tornarão inaptos por dez anos para o exercício de funções públicas" (art. 239). Nem sequer há previsão para o impeachment – é proibido e ponto final. São cláusulas para lá de pétreas, que relevam a fotografia de um país submetido a longos períodos ditatoriais e a governantes eternos. Pois bem: o presidente pretendeu realizar plebiscito no dia 28 de junho, a propósito da convocação da Assembléia Constituinte – a fim de uma nova Constituição ser feita. Nada expresso em relação à prorrogação de seu mandato ou reeleição, mas fato é que a Suprema Corte qualificou de inconstitucional e ilegal essa convocação e proibiu a sua realização. As cédulas eleitorais, impressas na Venezuela, foram declaradas ilegais. O Judiciário decidiu que o plebiscito era inválido e a conduta do presidente, ilegal. In­­­­timado disso tudo, o presidente manteve a data do plebiscito. Es­­se foi o limite do Direito: recolhido, a partir daí, às suas dependên­cias, instalou-se a exceção e o resultado todos nós sabemos. Mas, afinal de contas, em que isso importa a nós, brasileiros?

Em primeiro lugar, para nos orgulharmos de nossas respostas jurídicas a severas crises institucionais. A História nos prova que não é qualquer país que, depois de anos de ditadura, tem a capacidade de promover pacificamente o impeachment do presidente da República. Nada obstante a insistência do passado em se fazer presente (basta pensar nos "atos secretos" do Senado), fato é que as crises se passam e são bem ou mal resolvidas nas balizas do Direito. As soluções são jurídicas e têm sua legitimidade reforçada por meio de um processo de construção, desconstrução e recriação do Direito. Mas – e aqui está o aviso que vem de Hon­­duras –, não há qualquer garantia de que as respostas permaneçam sendo estas para todo o sempre: esse é o dilema de quem pretende celebrar a Constituição.

O alerta, portanto, está no perigo de esse orgulho degenerar-se em desapreço, em desatenção, em menosprezo à Constituição. Es­­­­tá no risco de criar governantes e governados que, vaidosos de nos­­so Estado constitucional, insistam em descumprir a Cons­­ti­­tui­­ção e ignorar as ordens dos poderes constituídos (ou cumprir apenas pedaços dela, a seu bel prazer). A bem da verdade, e por mais rígida que seja a resposta constitucional, fato é que a Constituição é uma dama frágil, que merece todo o nosso constante carinho e respeito. A força bruta e os discursos vazios têm facilidade em ignorar o Direito. Assim, não basta a repetição dos bordões da "Constituição-cidadã", nem tampouco o prestígio exacerbado só aos direitos fundamentais (como se a dignidade da pessoa não exigisse o respeito aos deveres fundamentais e à solidariedade social). O orgulho constitucional exige muito mais do que isso. A Constituição deve sempre – e cada dia mais – ser levada a sério.

Egon Bockmann Moreira, advogado, é doutor em Direito e leciona na Faculdade de Direito da UFPR.

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