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Sem esforço algum, a minoria dominante conseguiu impedir o debate eleitoral sobre temas como aborto, homofobia e conexos, mediante a tática bolchevique de incriminar ideias adversas. Antes, impôs-lhes o rótulo de postulação religiosa. Em seguida, interditou-os pervertendo o caráter laico do Estado. Duas fraudes intelectuais.

A primeira está em que insignes pensadores, ateus e agnósticos, condenam o aborto porque, desconhecido pela ciência o momento inicial da vida, julgam prudente não interferir. E homossexuais igualmente notórios, crentes ou céticos, rejeitam a equiparação jurídica da união homoafetiva ao casamento civil, face à impossibilidade fisiológica. Sucede, acrescento, que desejos ou sensações não são fonte de direito.

A segunda inverte a ordem lógica e histórica da intrínseca neutralidade religiosa do Estado, obtida a preço de sangue. No martírio dos cristãos sob o Império Romano, até o Edito de Constantino, de 313 d.C., se localiza o marco fundante do verdadeiro laicismo. E na precedência da pessoa frente ao Estado, sua criatura, reside o caráter servil e instrumental do aparato burocrático. Numa palavra: o Estado é intrinsecamente laico; o indivíduo, naturalmente livre para crer e dizer.

A tal evidência se rendeu a Constituição de 1988. Nela, a declaração dos direitos e garantias individuais precede a organização do Estado. Note-se que o pormenor da acentuada topografia daquelas regras, desenhada no interior do sistema normativo, é valorizado pelos exegetas constitucionais como penhor da subsidiariedade do poder político em face do cidadão. Graças à regra do art. 5º, VI, da Constituição, as pessoas gozam da liberdade religiosa, cabendo destarte ao Estado garantir o exercício desse direito fundamental. Ademais, ao direito à liberdade religiosa se soma o direito à livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV). Portanto, se o cidadão, norteado por princípio de sua filiação religiosa, exprime juízo de valor acerca de matéria de repercussão social, age legitimamente, impondo-se ao Estado o indeclinável dever de protegê-lo contra qualquer tentativa de cercear-lhe a liberdade de se expressar. De sorte que o cínico apelo à adulterada noção de laicismo estatal, para tolher manifestações contrárias ao aborto e quejandos, revela despudorada mistificação constitucional.

E como é possível falsear impunemente a letra explícita da Constituição? A resposta se encontra na avassaladora hegemonia cultural do esquerdismo. Envolta pela solércia inerente a essa ideologia, a laicização de sinal trocado avança rapidamente, estreitando a margem das prerrogativas constitucionais da maioria, enquanto alarga o campo de ação das minorias exóticas, protegidas por autoridades públicas, pela casta acadêmica engajada e por magnatas da finança internacional.

Esta inversão total do conceito de laicidade pode ser ilustrada por meio de três acontecimentos simbólicos. Um deles é fruto do ato político de Annise Parker, "prefeita gay de Houston", (assim identificada pelo jornal Folha de S.Paulo em 15 de março de 2012), consistente na sanção de lei prescritiva do exame, pelos burocratas, dos sermões de padres católicos e pastores evangélicos, a fim de verificar se neles há "discriminação" contra a grei LGBT. O outro ocorreu na Alemanha, cuja polícia deteve um pai de família que não permitiu à sua filha de 9 anos frequentar aula de educação sexual, pautada pela ideologia de gênero, onde se ensina as crianças a "tocar-se e conhecer-se", pois sua identidade sexual "é algo sobre que devem refletir". O terceiro resultou do Observatório Nacional da Laicidade, concebido pelo atual governo socialista francês, que "terá como tarefa formular propostas sobre a transmissão da ‘moral pública’, para dar-lhe um lugar digno na escola". Dito Observatório, versão cristofóbica da Inquisição medieval, destinado a punir "patologias religiosas", institucionaliza a doutrina produzida por seu delirante ministro de Educação, exposta em livro, do qual consta a seguinte psicopatia ideológica: "A Revolução Francesa é a irrupção no tempo de algo que não pertence ao tempo; é um começo absoluto, é a presença da encarnação de um sentido, de uma regeneração e de uma expiação do povo francês. 1789, o ano sem igual, é o ano do engendramento de um homem novo por meio de um brusco salto da história. A revolução é um acontecimento meta-histórico, quer dizer, um acontecimento religioso. A Revolução implica o esquecimento total daquilo que precedeu a Revolução. Em consequência, a escola tem um papel fundamental, porque a escola deve despojar a criança de todos os seus apegos pré-republicanos para educá-la até virar um citoyen. É bem um novo nascimento, uma transubstanciação que se opera na escola e por meio da escola gera esta nova igreja com seu novo clero, sua nova liturgia e suas novas Tábuas da Lei" (Vincent Peillon, La Révolution française n’est pas terminée). Das entrelinhas do texto, emerge sem o retoque pós-moderno o fantasma de Robespierre.

Eis eloquentes amostras da implacável destruição do Estado laico e o consequente retorno da religião de César, fechando um ciclo de 17 séculos. Elas esclarecem o porquê da censura eleitoral sublinhada no início?

Reginaldo Fanchin, advogado, é ex-professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de Curitiba e ex-professor do Seminário Maior Rainha dos Apóstolos da Arquidiocese de Curitiba.

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