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Manifestante critica o Congresso Nacional em passeata em Brasília: retrocesso na luta anticorrupção está em curso.
Manifestante critica o Congresso Nacional em passeata em Brasília.| Foto: Nelson Almeida/AFP

Virou rotina, em determinado estado de nossa Federação, acordar às 6 horas, ligar a televisão no noticiário local e verificar qual o preso do dia, bem como a operação policial em destaque. Com relação aos presos, temos presidentes de partidos políticos, conselheiros de Tribunais de Contas, governadores, ex-governadores, grandes empresários do ramo de transportes, doleiros, secretários de Saúde – lembrando que estamos em uma pandemia –, secretários de Educação e os nobres agentes públicos que cuidam de nossa infraestrutura, os secretários de Obras.

Em relação aos investigados, prefeitos, ex-prefeitos, vice-governadores e, mais uma vez, secretários de governo estão no foco. A lista é extensa. Observe que o secretário de Saúde, em plena pandemia, pediu demissão, alegando questões de foro íntimo, necessidade de proteção do próprio CPF e receio de problemas com a Justiça, no futuro. O que os antepassados fizeram?

O estado ora mencionado teve seis governadores enrolados com a Justiça – até o último fio de cabelo – em apenas quatro anos, sendo que cinco foram presos e o atual está afastado por 180 dias. Os porteiros e zeladores devem ficar em polvorosa quando a equipe da Polícia Federal toca o interfone. Quem será dessa vez? Repórteres e equipes de tevê montam acampamento para registrar a saída de veículos vistosos, com películas automotivas no último nível.

Além disso, as investigações nesse estado apontam movimentações de cifras astronômicas, que qualquer mortal necessitaria de pelo menos três encarnações para gastar. Entretanto, o discurso é sempre o mesmo: “agi de forma republicana”, plena inocência, perseguição política e ausência de provas.

Ironias à parte, a situação desse estado é muito grave, quase um doente terminal necessitando de medicação de alta complexidade. Esse remédio não se refere, simplesmente, à troca do chefe do Executivo por alguém mais capacitado, implantação de políticas de integridade, gestão de riscos e controles internos, renovação de nosso parlamento ou fixação de mais orçamento para áreas prioritárias como saúde, transporte, educação e segurança pública.

É de amplo conhecimento que problemas relacionados com a corrupção e malversação do erário são assuntos recorrentes no cotidiano brasileiro. Em pleno 2020, mesmo com diversas ferramentas e metodologias à disposição no que diz respeito à governança na área pública, eventos indesejáveis continuam a ocorrer. Em alguns casos, por meio de atos intencionais do agente público e, em outras situações, apenas em função de omissões no que tange aos deveres e responsabilidades. A administração pública brasileira chegou a esse nível por acaso? Entendo que não! O patrimonialismo é o principal culpado.

A respeito do panorama apresentado, a advogada e professora Flávia Carvalho Mendes Saraiva argumenta que o patrimonialismo brasileiro tem suas origens no Estado patrimonial português, preservando sua característica fundamental, representada pela presença nos quadros burocráticos de um determinado estamento – e, posteriormente, classe – que rege e governa observando apenas seus próprios interesses, sem atentar para as normas legais e impessoalidade, valor fundamental no exercício do múnus público, em que pese todas as transformações históricas e culturais.

É no mínimo inusitado estarmos numa era de grande desenvolvimento tecnológico e cultural, com globalização que proporciona o contato praticamente instantâneo entre diferentes culturas e povos, e não conseguirmos extinguir as principais mazelas que assolam nosso país como a fome, o desemprego, a infraestrutura precária, a ineficiência na gestão e a corrupção. Certamente, o patrimonialismo é um entrave significativo para a extinção dessas mazelas, traduzindo-se numa verdadeira crise histórica na qual a sociedade brasileira se encontra até hoje. Todavia, não paramos somente nesse tema.

O problema é estrutural e as mudanças devem começar a acontecer, inicialmente, com a conscientização da parte de cima do organograma, que fará com que o ambiente e a cultura institucional evoluam no caminho da exação. Prosseguindo, entendo também que a mudança depende de cada um de nós, cidadãos comuns, e não somente de terceiros como o vizinho, deputado, vereador ou policial. Temos de fazer nossa parte. Como dizia Mark Twain, escritor e humorista norte-americano, não nos libertamos de um hábito atirando-o pela janela. É preciso fazê-lo descer a escada, degrau por degrau.

A gestão de riscos e os programas de integridade ganharam força nos últimos anos, mostrando-se ferramentas eficientes para a atuação dos agentes públicos na busca da boa gestão dos recursos públicos e no combate à corrupção. Contudo, não conseguimos de forma alguma evoluir. Além do patrimonialismo, onde mais está a origem desse problema? Na ausência total de um “ambiente de controle” focado em aspectos éticos e de impessoalidade, no que se refere à atuação dos agentes públicos.

É necessário citar, neste contexto, que a estrutura integrada desenvolvida a partir das diretrizes do Committe Of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission (Coso), que publicou critérios práticos e amplamente aceitos para a gestão de riscos e o estabelecimento de controles internos, mostra-se como uma das mais adequadas, sendo bastante conhecida e divulgada até mesmo em nível mundial.

Ainda segundo o Coso, o “ambiente de controle” define o perfil das organizações, exercendo influência sobre a consciência dos colaboradores. Essa influência serve como base para o controle interno, proporcionando disciplina e estrutura adequada. Nesse sentido, elementos como a integridade pessoal e profissional, valores éticos, fornecimento de orientações de cunho moral, políticas e práticas de recursos humanos, competência profissional, estilo gerencial ou perfil dos superiores, formas de atribuição de autoridade e responsabilidade e estrutura organizacional são importantes para um “ambiente de controle” efetivo.

Como o ambiente de controle representa a primeira linha de defesa numa organização, com o objetivo de reduzir os riscos de fraudes e impropriedades, um tom forte da alta administração desempenha um papel fundamental, uma vez que o exemplo vem de cima. É como um pai que não pode praticar um malfeito na frente de seu filho. A chance de o filho seguir esse mau exemplo é muito grande. De outra forma, em um ambiente permissivo, aqueles que querem fazer as coisas da forma correta irão se sentir incomodados. Segundo Peter Drucker, trabalhar numa organização cujo sistema de valores é inaceitável ou incompatível com o seu leva a um péssimo desempenho e à frustração.

Ainda falando sobre impessoalidade, observa-se que os agentes públicos estão mais preocupados, a todo custo, com questões pessoais, conchavos, favorecimento, reeleição, projeção de poder e influência. Nossos governantes são seduzidos por essas questões fúteis quando, na verdade, deveriam canalizar suas energias para bem servir a coletividade.

Finalizando, outros quatro pontos necessitam de especial atenção, de maneira mais específica, por parte daqueles que ocupam a parte de cima do organograma, os dirigentes máximos, secretários de governo e gestores nas diversas áreas: estar rodeados de competentes e confiáveis assessores; estabelecer uma estrutura organizacional que promova, de maneira efetiva, a atuação independente de todos os seus elementos, de acordo com as suas atribuições e competências legais, de forma a facilitar e aperfeiçoar o processo decisório; aplicar sempre a boa técnica, e não a política, nos assuntos que necessitem de ingredientes tipicamente técnicos; e, por fim, liderar pelo exemplo e de forma corajosa, com atuação baseada em sólidos padrões relacionados com a conformidade, transparência e prestação de contas (accountability).

Carlos Alexandre Nascimento Wanderley é mestre em Ciências Contábeis e autor de livros e artigos na área de auditoria e controle governamental.

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