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O caso Geisy se transformou em um fenômeno ju­­rídico. Não exatamen­­te pela situação de fato em si ou propriamente pelas me­­didas jurídicas que reciprocamente podem ser adotadas. Uma aluna de instituição de ensino superior transita pelos corredores, segundo a ótica de alguns, em trajes inadequados e contrários à moralidade do público. A aluna é submetida a grande violência por parte dos colegas. A instituição reage, aplica sanção, expulsando-a. Volta atrás. Alu­­sões a processos criminais e de indenização recíprocos. No final das contas, as imagens exaustivamente transmitidas pela televisão induzem a uma profunda reflexão sobre a ainda difícil convivência com a diversidade.

A pouca ou nenhuma tolerância para com aquele que ultrapassa a linha divisória dos padrões morais instituídos (por quem?). Deve-se reconhecer que às vezes a linha divisória é realmente tênue. Culpa da modernidade? Talvez. Segundo Habber­­mas, um dos propósitos do chamado projeto da modernidade, pós-Revolução Francesa, era o de desenvolver a ciência, moralidade e leis universais para o bem da coletividade. Sempre que se cogita algo universal, para todos, se induz a uma racionalidade que afasta a noção de diversidade – o que provoca arrepios!

Nesse sentido, ao longo de muitos séculos trouxemos na gênese do pensamento humano tais ideias iluministas, que acabaram por desenvolver uma ra­­zão tendente a dificultar a aceitação da diversidade. Para o bem de todos, a humanidade não se constitui de valores estanques, perenes e imutáveis. Ao contrário, os valores sociais estão sempre se modificando. O direito é dinâmico.

Muito se avançou no que diz respeito à aceitação da diversidade. A nossa Constituição contém diversas normas que protegem aqueles que são "diferentes", a começar pelo princípio da dignidade da pessoa humana, hoje reconhecidamente um norte e uma base de interpretação de todas as demais normas jurídicas.

A agressão sofrida pela aluna foi desproporcional a qualquer violação de norma jurídica ou moral. A manifestação dos colegas de Geisy nos remeteu aos julgamentos populares comuns na Idade Média, feitos com fundamento no senso comum do povo, na idade da pedra do Estado de Direito. Não se está a defender a postura da aluna. É evidente, e seria hipocrisia também recriminável, negar que o comportamento e a forma de vestir devem se adequar aos ambientes e espaços públicos. O senador Eduardo Suplicy ao vestir uma sunga vermelha no espaço público do Congresso Nacional – a casa da democracia – também sofreu sérias represálias e corre risco de ser processado por falta de decoro parlamentar.

O fato é que a Constituição, a civilização, a humanidade e a dignidade da pessoa humana exigem que qualquer sanção seja precedida de oportunidade de defesa, de processo legal, e de previsão da sanção em alguma norma preexistente. Julgar e aplicar sanção não pode ser atribuição direta da população ao sabor dos humores e rótulos morais transitórios e mutáveis. Não podemos correr o risco de que uma conduta nossa reputada inadequada por outras pessoas, de acordo com os padrões de­­las, provoque nosso linchamento físico ou moral. Já se disse: a lei que não protege meu inimigo também não me protegerá quando precisar.

Toda e qualquer conduta ilícita ou imoral, de acordo com regras preestabelecidas e tornadas públicas, deve ser objeto de sanção, desde que precedida de processo legal e das garantias do contraditório e da ampla defesa. Vale até mesmo punir por infração a decoro ou à moral! Só não vale apedrejamento em praça pública!

José Anacleto Abduch Santos, advogado, procurador do estado, mestre e doutorando em Direito Administrativo pela UFPR, é professor do UniCuritiba

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