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Em seu livro Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Hollanda cita uma expressão atribuída a Ribeiro Couto, segundo a qual "a contribuição do Brasil para a civilização será de cordialidade". Com efeito, uma de nossas características que estrangeiros viajando pelo Brasil mais elogiam é a hospitalidade e a generosidade dos brasileiros, que se traduz como uma inclusão imediata dos visitantes em todos os círculos sociais, uma receptividade no mais das vezes inesperada. Os relatos dos visitantes europeus durante a Copa parecem confirmar esse conjunto de observações (feitas no século passado, mas que parecem ainda vigorar no Brasil).

No entanto, como nota o próprio Sérgio Buarque, essa nossa "virtude" não é de modo algum sinônimo de "boas maneiras" ou de "civilidade"; constitui-se, antes, de "expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante". E, como se sabe, um fundo emotivo transbordante a rigor pode transbordar para qualquer lado. Talvez aqui encontremos o início de uma explicação para a onda recente de agressões contra imigrantes haitianos aqui em Curitiba, como reportado pela Gazeta do Povo.

Quem chega a conhecer os haitianos de perto não pode deixar de notar certas qualidades deles. Em primeiro lugar, eles são respeitosos e extremamente agradecidos pela acolhida. Fazemos parte de um projeto de extensão do Curso de Letras da UFPR que tem como objetivo ensinar português para os haitianos aos sábados à tarde, e é sempre impressionante o capricho com que eles se apresentam, de banho tomado e com a roupa de passeio. Em segundo lugar, vê-se imediatamente que estamos lidando, aqui no Brasil, com o que deve ser talvez não exatamente a elite, mas pelo menos a classe média haitiana: vários de nossos estudantes estavam na universidade no Haiti, outros são advogados, engenheiros ou professores graduados, e uma boa parte deles fala muito bem o francês, o que quer dizer anos e anos de escolarização lá, porque quem não teve acesso à escola fala apenas o creole haitiano. Ademais, para ter os US$ 3 mil necessários para sair de lá e chegar aqui é preciso ser pelo menos de classe média.

Uma boa parte dos nossos alunos é composta por homens jovens, que vieram para cá a convite – nossos governantes foram ao Haiti oferecer um visto que lhes dá direito a tudo, menos ao voto. A intenção do governo brasileiro era clara: ampliar a oferta de mão de obra no Brasil, que em tempos recentes tem estado mesmo muito bem na fotografia econômica do mundo, com uma boa reação à crise internacional e um nível de empregos muito elevado. Esse panorama econômico torna a migração para cá um fato: do mesmo modo que os brasileiros em décadas passadas foram para os Estados Unidos ou a Europa esperando conquistar uma vida melhor lá, agora são outros povos, dentre eles os haitianos, que vêm para cá buscar perspectivas de uma vida melhor. Antes de ser devastado pelo terremoto de janeiro de 2010, o Haiti já era um país pobre, vitimado por uma guerra civil; a reconstrução do país, portanto, será um processo muito longo. Aliás, os refugiados de guerras, conflitos religiosos e violência generalizada, além dos refugiados do clima, ultrapassam os 50 milhões hoje no mundo, e muitos deles vão seguramente aportar aqui.

Por causa da fama de cordialidade dos brasileiros e pela história recente de migração dos brasileiros para outros países, seria de se esperar que os haitianos e outros imigrantes fossem bem recebidos aqui. Não é o que se vê. Em parte, o problema é de informação. O problema de saúde mundial colocado pela expansão do ebola assusta a todos e é bastante natural que as pessoas (incluindo os haitianos) queiram se proteger. Mas as atitudes racistas não podem ser justificadas pela falta de informação gritante que confunde haitianos e africanos – os nossos baianos também são afrodescendentes e nem por isso são portadores do ebola, certo? De qualquer modo, não é porque alguém é negro (ou verde, ou vermelho) que está vindo direto da África trazendo o ebola! Por favor!

Apesar de muitos haitianos serem profissionais de nível superior, já formados no Haiti, acabam se sujeitando a trabalhos braçais e mal remunerados no Brasil porque ainda não dominam bem a língua e porque acreditam que a migração para cá pode tirá-los – a eles e a suas famílias – da situação miserável em que vivem lá. Além de serem escolarizados, os haitianos são educados, falam baixo, em geral são religiosos, são respeitosos com as mulheres e têm sempre um sorriso no rosto, apesar de todos os dissabores que enfrentaram e enfrentam. Eles não são santos, mas não se deixam levar facilmente por emoções extremas. Por que, então, tratá-los de maneira preconceituosa e hostil? Nada justifica os episódios de violência contra eles – o relato da cena do haitiano que é espancado enquanto repete que estamos entre irmãos nos faz perguntar se estamos mesmo no Brasil!

Para muitos de nós, é difícil acreditar que o Brasil seja um país racista. Na verdade, a miscigenação, que é uma das marcas definitórias do povo brasileiro, deporia imediatamente contra qualquer forma de racismo, porque muito provavelmente aquele que chama o outro de preto é mulato. Em particular, o ódio racial que historicamente impera em países como os Estados Unidos seria descabido aqui. Mas os fatos recentes aqui em Curitiba mostram que é algo muito semelhante a isso o que está acontecendo: os brasileiros só são "homens cordiais" com os turistas ricos, que vêm gastar dinheiro no Brasil e depois vão embora. Quando estão lado a lado com trabalhadores de outros países, os brasileiros se revelam rancorosos, talvez temerosos de perder sua posição para aquele outro trabalhador que é mais bem preparado ou que trabalha com mais vontade.

E ainda não chegaram os tempos das vacas magras por aqui. O que vai acontecer quando chegarem?

Maria Cristina Figueiredo Silva é integrante da coordenação do Projeto Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH) da UFPR.

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