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Houve um tempo em que o Brasil confiscava bois. Literalmente. O governo, incapaz de produzir riqueza, decidiu tabelar o preço da carne e, quando o mercado reagiu com desabastecimento, partiu para o campo em busca de culpados pela inflação. Era o ápice da irracionalidade intervencionista, a demonstração viva de que o Estado, quando assume o papel de comerciante, transforma-se em predador. Foi nesse cenário que surgiu uma dissidência moral e econômica: a consciência de que a liberdade valia mais que a ilusão do “almoço grátis”.
Naquele instante, parecia que o Brasil havia encenado sua própria versão de A Revolta de Atlas – só que, em vez de açoites sobre os ombros de titãs cansados, eram fiscais pisando no barro atrás de bois “culpados” pela inflação. O agro, o verdadeiro Atlas brasileiro, com potencial para carregar o país nas costas, era punido por tentar fazê-lo. E, como no romance de Ayn Rand, a lógica da produção fora invertida: quem podia criar valor era perseguido; quem o destruía, recompensado.
O ativismo não é apenas um erro filosófico ou um abuso hermenêutico. Ele é uma agressão à mesa do povo. Porque cada vez que o STF decide contra o campo, o que se perde não é uma tese – é um prato de comida
Entre os nomes que ousaram romper o círculo vicioso da tutela estatal, um se destaca: Antonio Cabrera. Ao defender a liberação dos preços da carne e extinguir autarquias que viviam do controle, Cabrera não apenas libertou o boi do pasto confiscado – libertou o Brasil da mentalidade da escassez. Seu gesto foi o ponto de inflexão de uma história que transformou o país de importador de carne em maior exportador do mundo. Foi quando o agro se libertou que o Brasil começou a prosperar.
A extinção do Instituto do Açúcar e do Álcool e do Instituto Brasileiro do Café, decretada em 1990, simbolizou mais do que uma reforma administrativa. Era uma reforma moral: o Estado deixava de dizer ao produtor quanto podia plantar, vender ou lucrar. A agricultura, enfim, voltava ao seu juiz natural: o mercado. E o resultado não tardou. A produtividade disparou, a área plantada cresceu e o Brasil tornou-se celeiro do mundo – não por milagre, mas por liberdade.
Mas, como toda conquista de liberdade, a vitória do campo não tardou a ser desafiada. Depois do triunfo liberal dos anos 1990, a velha tentação do controle ressurgiu, travestida de novas virtudes. O ativismo judicial, amparado por discursos de justiça social e ambiental, começou a invadir o espaço da política econômica. O caso do Funrural é o emblema: em 2010 e 2011, o Supremo Tribunal Federal declarou o tributo inconstitucional, por unanimidade. Em 2017, mudou de ideia por 6 a 5, com uma maioria frágil e uma retórica confusa. De um voto para outro, produtores rurais passaram a dever o que já não deviam. E o princípio da segurança jurídica – fundamento do Estado de Direito – foi substituído pela vontade interpretativa de onze togados.
A mesma lógica atingiu a infraestrutura do campo. A Ferrogrão, que reduziria em 77% as emissões de CO₂ e os custos logísticos do agronegócio, foi paralisada pelo STF sob o argumento de questões ambientais. A Corte que deveria garantir a liberdade de empreender tornou-se o novo departamento de licenças morais do país. No lugar da lei, a convicção subjetiva. No lugar da previsibilidade, o medo.
Em A República e o Intérprete, mostrei que o juiz que substitui o texto pela própria consciência não interpreta – legisla. E, ao legislar, destrói a república, porque rompe o pacto que faz da lei um limite comum. Quando o Supremo se converte em um segundo Legislativo, o país volta ao ponto de partida: o campo sob o jugo do poder, o produtor refém da insegurança e o preço da carne decidido por decreto judicial.
É aqui que se impõe uma advertência hermenêutica: as questões constitucionais do campo – da propriedade rural ao direito de produzir – devem ser lidas à luz do núcleo duro da Constituição, e não das marés ideológicas do momento. Esse núcleo, como demonstrei em A República e o Intérprete, é composto pelos direitos individuais à vida, à liberdade, à propriedade e à segurança – cláusulas pétreas que não se dobram ao moralismo de gabinete nem à retórica do “interesse coletivo” quando este serve de disfarce para a violação da liberdade econômica. Interpretar o agro à margem desse núcleo é romper o pacto fundacional que fez da Constituição um limite ao poder, e não um instrumento de sua expansão. O campo, que alimenta o Brasil, só prospera quando a lei o protege do arbítrio – e não quando o submete à moral passageira dos intérpretes.
A segurança alimentar, por sua vez, é uma consequência direta desse núcleo duro. Proteger a liberdade de produzir é proteger o direito à vida – porque sem produção não há alimento, e sem alimento não há liberdade. A propriedade, no campo, não é privilégio, mas a expressão concreta da liberdade produtiva que alimenta o país. O direito de possuir e explorar a terra é a tradução econômica do direito de viver. Por isso, toda política, decisão judicial ou intervenção estatal que reduza a produtividade sob o pretexto de virtude ambiental ou justiça social precisa ser lida sob a lente constitucional correta: se ameaça a vida, a liberdade e a propriedade, é inconstitucional por essência.
A Constituição não autoriza o Estado a escolher quem pode produzir, o que plantar ou quanto lucrar. Ela impõe limites ao poder justamente para que a sociedade possa se alimentar – no corpo e na alma – sem depender da benevolência dos que governam. A segurança alimentar, portanto, não é apenas uma política pública: é o resultado civilizacional da liberdade econômica protegida como cláusula pétrea.
É essa a lição que Randy Barnett chama de o verdadeiro espírito republicano: “a Constituição é a lei que governa aqueles que nos governam”. Ela não confere privilégios; impõe limites. Não é o espelho das vontades do dia, mas o freio das tentações permanentes do poder. Quando o intérprete ultrapassa esse limite, não apenas trai o texto – trai o próprio pacto de confiança que permite ao cidadão obedecer a leis que não escreveu, porque sabe que quem as aplica também está submetido a elas. O agricultor, o empreendedor, o cidadão comum – todos sustentam a República não porque temem o Estado, mas porque confiam que o Estado também é governado pela lei. Essa é a fronteira moral que separa a civilização do arbítrio.
O Brasil não ficou grande porque teve um Estado forte, mas porque teve homens fortes o suficiente para limitar o Estado. Cabrera entendeu isso antes de muitos: a liberdade econômica é a expressão concreta da liberdade moral. Cada barreira derrubada, cada imposto extinto, cada norma simplificada é uma restituição de dignidade ao trabalho humano. E cada interferência judicial que recria obrigações mortas é um roubo silencioso da prosperidade nacional.
No fim, o ativismo não é apenas um erro filosófico ou um abuso hermenêutico. Ele é uma agressão à mesa do povo. Porque cada vez que o STF decide contra o campo, o que se perde não é uma tese – é um prato de comida. E, entre o boi confiscado de ontem e o tributo ressuscitado de hoje, o Brasil descobre que o poder que invada a economia é o mesmo que esvazia a despensa.
Leonardo Corrêa, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, com LL.M pela University of Pennsylvania, cofundador e presidente da Lexum e autor do livro "A República e o Intérprete – Notas para um Constitucionalismo Republicano em Tempos de Juízes Legisladores".
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



