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Quando eu tinha 12 anos, fui a cinco enterros em uma semana. Meus colegas de classe e eu nos sentamos, grudados uns aos outros nos bancos lotados da igreja, ouvindo My Heart Will Go On, de Celine Dion, levando grossas fitas brancas no peito parecidas com os “A” escarlates. De repente, fazíamos parte de um “clube de sobreviventes”, pequeno e terrível.

A chacina da Westside Middle School foi praticamente esquecida, não por ter ocorrido há 20 anos, mas pelo número de ataques semelhantes que vieram depois. Antes de os termos “tiroteio em massa” e “atirador ativo” entrarem para o vocabulário diário, um dos meus colegas de classe entrou na escola rural de ensino médio em Jonesboro, no Arkansas, logo depois do almoço. Ativou o alarme de incêndio, o que fez com que todo mundo se dirigisse para o playground e, ao lado de outro garoto da nossa classe, também fortemente armado, começou a atirar contra nós do bosque próximo. Minha melhor amiga, Paige Herring, foi morta nesse dia, além de outras três meninas e a nossa querida professora de Inglês do sexto ano. Outras dez pessoas ficaram feridas.

Adquiri prática suficiente ao longo dos anos, tentando contar essa história da maneira mais resumida possível, atropelando a lembrança das pessoas com os chavões. Poucas pessoas fora da nossa comunidade se recordam de Westside. “Qual dos tiroteios foi o seu?”, as pessoas perguntam.

O massacre de Westside aconteceu um ano e um mês antes de Columbine. Na época, era uma anomalia e pareceu abalar o país inteiro. Os Estados Unidos choraram conosco: foram baldes de flores, cartões feitos à mão e livros sobre luto às pencas, o que ajudou nossa cidade a se sentir menos só.

A lista inimaginável – a de crianças atingidas na escola – aumentou muito desde 1998

O ritual hoje já é conhecido e, no momento, eu o vejo no apoio dedicado aos alunos de Parkland, na Flórida, onde 17 pessoas foram mortas no mês passado. A lista inimaginável – a de crianças atingidas na escola – aumentou muito desde 1998. E toda vez que uma nova chacina ocorre, eu entro em um estado quase catatônico, mas é impossível falar sobre o assunto com quem não passou pela experiência. Como puxar o assunto na terceira vez que você sai com um cara, depois do horror na boate Pulse, ou fazer um comentário com a pessoa com quem divide o apartamento após o massacre de Newtown?

Tem um grupo que entende tudo: meus ex-colegas de classe naquele playground, os que sobreviveram comigo. Chamamos de Westside Warriors. É com eles, na nossa página do Facebook, que me sinto menos só quando acontece uma nova tragédia, onde posso visitar Paige em cores vivas, como a vi da última vez. Imagino que a maioria desses grupos de ex-alunos tem um perfil na rede social só para registrar as fotos de penteados horrorosos e jeans estranhos de outras épocas, ou falar dos reencontros. Nós não compartilhamos histórias assim; dividimos fotos das colegas que perdemos, falamos da dificuldade que é desligar a tevê após a tragédia mais recente. Mantemos contato para manter o jardim do nosso memorial, o antigo playground da escola, intacto. Reunimos lembranças de condolências para enviar para as novas vítimas como se fôssemos embaixadores da dor. Foi isso que aconteceu conosco. Mas, mais importante que tudo, a página do Facebook é o nosso refúgio de todo ano, quando março chega.

Este 24 de março marcou o vigésimo aniversário do massacre em Westside Middle School; foi também a data escolhida para os protestos do March for Our Lives, movimento liderado pelos estudantes que pedem que algo seja feito pela violência armada.

Eu já estava apavorada com a chegada deste mês, não só porque relembraria o vigésimo ano da nossa tragédia, mas também a chacina de Las Vegas, em 2017, e a de Sutherland Springs, no Texas, logo em seguida, em novembro, a tristeza de cada ocorrência agravando a nossa ocorrência pessoal. A página do Facebook continuava uma constante, inabalável, não só quando se aproximavam os aniversários, mas quando havia outros tiroteios ou aqueles dias mais difíceis, quando os membros ajudavam uns aos outros a seguir adiante. Imaginei que, este ano, nós nos reuniríamos para chorar nosso luto, como sempre. Faríamos postagens, enviaríamos torpedos, mensagens e e-mails; ligaríamos uns para os outros, carregando a tocha do nosso dia triste e nossas lembranças.

E aí 17 pessoas foram mortas na Marjory Stoneman Douglas High School.

O que quer dizer que este 24 de março, 20 anos após o massacre no nosso playground, não é mais só nosso. A minha reação inicial ao saber do evento da March for Our Lives foi raiva e indignação porque agora a lembrança de Paige se mesclará às de muitas outras pessoas.

Flavio Quintela:Nas mãos certas, elas salvam (23 de fevereiro de 2018)

Leia também: Armas na escola? (artigo de Wanda Camargo, publicado em 13 de março de 2018)

Liguei para uma amiga do playground, analisamos o caso e decidimos ir à passeata. E foi bom ter algo a ver com aquele dia terrível, em que geralmente é difícil até levantar da cama. Agora tínhamos um plano: estaríamos juntas em Washington, sustentadas por nossa vivência adulta, prestando homenagem a Westside e marchando lado a lado com quem passou pelo mesmo. Achei que os Warriors concordariam, que a decisão seria um consenso.

Foi por isso que fiquei de queixo caído com a postagem que denunciava a marcha. Alguns membros ficaram chateados com o fato de que o dia nos estava sendo tirado, mas outros tantos ficaram furiosos com o teor do evento; achavam que fora cuidadosamente planejado para mandar um recado político com o qual não concordavam.

O pessoal reclamou que a organização era “contra todas as armas”, que escolheu “o nosso dia de recordações” para propagar seus objetivos políticos – e comentou o armamento dos professores, o aumento da segurança e dos “treinos de procedimento de confinamento”.

Até entendo que muita gente defenda a preparação e não a prevenção, mas é um argumento que não aceito. Se meus colegas de classe pensarem naquele dia, em 1998, vão se lembrar de que nossos professores estavam brancos feito fantasmas, congelados de medo. Eu mesma tive de empurrar uma para ligar para o serviço de emergência porque ela estava imóvel, em choque, parada na frente do telefone. A outra conseguiu puxar uma aluna, que acabou se salvando, mas não foi além disso. Não teria conseguido combater os atiradores e acho que não seria direito exigir que o fizesse. Ninguém sabe como reagiria em uma situação tão extrema, por isso acho que a ideia de armar os professores passa uma noção falsa de segurança.

Tivemos uma percepção maior de maldade e medo em dez minutos do que muita gente durante a vida inteira

Além da falta de confiança na praticidade de armar nossos docentes como parte da solução, a discussão em si me deixou incrivelmente triste, pois significa que aceitamos a situação como a nova norma. Westside foi o início de uma epidemia. Foi estarrecedor descobrir um grupo de sobreviventes – meus ex-colegas – tão dividido quanto o país. De fato, estavam reagindo com o cérebro desconfiado dos adultos que são hoje, e não o coração infantil e puro de quando éramos jovens.

Não consigo aceitar o princípio de que mais armas vão solucionar a questão das chacinas. Alguns ex-colegas escreveram, afirmando que “não querem se envolver no debate de armas” – ora, não dá para falar de tiroteios sem abordar a questão.

Enviam diários para os sobreviventes atuais, encorajando-os a escrever ali seus sentimentos, dando início à superação – mas esta é uma geração que cresceu com várias plataformas nas quais pode expressar suas opiniões, ou seja, não vai se satisfazer em esconder seus pensamentos em um livreto qualquer escondido em uma estante. Mostrar-se, manifestar-se e protestar fazem parte de sua terapia. Em uma das nossas postagens no Facebook havia o seguinte comentário: “É tudo muito diferente do que houve conosco. Esse pessoal tem um objetivo bem claro: acabar com as armas”. É verdade. É diferente do nosso. Essas vítimas estão se ajudando, exigindo leis de regulamentação de armas sensatas que salvem o futuro.

A cada ano, o 24 de março fica cada vez mais difícil para mim porque, como adulta, agora consigo definir o horror da tragédia. Foram menos de dez minutos naquele playground, mas tanto eu como meus colegas tivemos uma percepção maior de maldade e medo nesse tempo do que muita gente durante a vida inteira. Não posso trocar o Warriors por um grupo que concorde comigo, mas pude marchar este fim de semana em Washington para garantir que, daqui a 20 anos, Emma González não vai escrever para contar sua história, e a de seus amigos, mas sim para comemorar o dia em que se pronunciou para dar um basta.

Mary Hollis Inboden é atriz em Los Angeles.
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