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O Anel da obra ficcional de Tolkien.
O Anel da obra ficcional de Tolkien.| Foto: Peter J. Yost/Creative Commons

O ser humano ainda não foi capaz de sintetizar, seja pelos processos de destilação ou fermentação, substância mais embriagante do que poder absoluto. Na obra de J. R. R. Tolkien, “The One Ring” é utilizado como uma analogia a esse tipo de poder. Ao longo da estória, ele corrompe a todos, mesmo e, talvez, principalmente, aqueles que querem utilizá-lo para o bem. Os que não querem se valer do seu poder de jeito nenhum, mas apenas destruí-lo, os hobbits, estão menos sujeitos a essa degeneração; mas, ainda assim, com o passar do tempo, sofrem seus implacáveis efeitos.

Infelizmente, na política, não existe algo equivalente ao Mount Doom, uma forma de destruir, em definitivo, esse poder e sua corrupção. Entretanto, sem prejuízo de versões mais rudimentares concebidas ao longo da história, pelo menos desde o século XVIII, há um paliativo para essa vício: o liberalismo e suas restrições ao exercício de poder, consubstanciadas, em grande medida, nas constituições dos estados democráticos de direito modernos. Os adeptos dessas ideias, os chamados “liberais”, como todos os humanos, estão também sujeitos à corrupção do poder; mas, por terem a noção filosófica do quanto essa concentração de autoridade é perigosa, tendem a querer mais destruir esses instrumentos de exercício do poder do que utilizá-los em favor dos seus fins. Essa compreensão, quase epistemológica, da própria falibilidade é, fundamentalmente, o que separa um liberal dos defensores de outras ideologias.

Em função disso, nos últimos séculos da história humana, em vários contextos e geografias, os liberais têm se encontrado presos em uma espécie de pêndulo: ora são identificados com a esquerda, ora com a direita, grupos, em geral, diametralmente opostos entre si em quase tudo. Esse fenômeno decorre do fato de que, assim como O Anel na obra de Tolkien, o poder também muda de mãos com constância, e pode ser tão caprichoso quanto ao escorregar das mãos de um mestre para o próximo.

Com efeito, o liberalismo que chamamos de “clássico” – aquele de Milton Friedman, John Stuart Mill, Adam Smith e tantos outros – foi concebido, inicialmente, como a ideologia dos revolucionários que se opunham ao poder absoluto dos monarcas. No início do século XX, foi a ideologia das democracias ocidentais quando se opuseram às autocracias em ambas as guerras mundiais e, no contexto da Guerra Fria, tornou-se o arcabouço econômico e filosófico das potências ocidentais, lideradas pelos Estados Unidos, para criticar o grupo geopolítico de países socialistas, liderados pela União Soviética. Sem dúvidas, no contexto das revoluções liberais contra as monarquias, o liberalismo era visto como um conjunto de ideias “de esquerda”, o que remonta à própria origem dessa noção (esquerda e direita), que corresponde à posição do chamado “terceiro estado” em relação ao rei na França. Por outro lado, na conjuntura da Guerra Fria, os liberais eram, decididamente, de direita, pois se opunham aos socialistas.

Quando o poder do Estado tudo pode tirar, quem está fora dele não tem absolutamente nada a perder e tem todos os incentivos para usar de todos os meios que estejam a disposição para haver esse poder político e exercer essa autoridade

Muito poderia ser dito sobre a imprecisão e variabilidade histórica desses termos – esquerda e direita –, mas não é disto que se ocupa este texto. Há, na literatura da Ciência Política, quem possa prover muito mais profundas reflexões sobre esse assunto. Nesta oportunidade, chama-se a atenção para o movimento pendular do liberalismo, sempre em oposição ao exercício de poder absoluto, mas invocado por defensores de ideias muito distintas entre si.

No Brasil, o atual contexto e nossa história recente favorecem a demonstração desse ponto. Na segunda metade do século XX, enquanto o País estava sujeito ao regime militar, algumas figuras, desde então e até hoje identificadas com a esquerda brasileira, defendiam, efusivamente, valores como a liberdade de expressão, a liberdade de pensamento, a liberdade de ir e vir (locomoção), e garantismo penal (restrições ao poder de punir do Estado). Naquele contexto, a esquerda brasileira não exercia o poder do Estado e sentia todas as dores que se opor a ele impõe. Certamente, para quem era perseguido pelo aparato punitivo do Estado sem tantos limites, ou tinha a divulgação de suas ideias restritas, era óbvia a importância de controlar o exercício do poder. Por outro lado, a direita, em geral, que tinha todo esse poder e, portanto, era capaz de impor seus valores e ideias, tinha posições menos liberais, de modo que houvesse pouco ou nenhum controle sobre o exercício dessa autoridade.

Após a redemocratização, dos 9 (nove) mandatos de Presidente da República investidos por eleições diretas, 7 (sete) deles foram ocupados, pelo menos parcialmente, por Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva ou Dilma Roussef. Todos estes são políticos – declaradamente – de esquerda, o que é confirmado pelos seus respectivos históricos de militância, conquanto seja comum alguma controvérsia sobre o posicionamento político do primeiro. Muito mais poderia ser dito para provar que houve uma ascensão da esquerda ao poder nesse período – desde a ocupação de vagas em tribunais, aos posicionamentos de grandes veículos de imprensa e às posições políticas prevalentes nas universidades –, mas a Presidência da República é o indicador mais significativo nesse sentido.

Não é coincidência, portanto, que, nesse período, desde a redemocratização, a esquerda brasileira tenha se tornado menos liberal. Hoje, normalizam-se restrições às liberdades de expressão e de locomoção e mesmo o garantismo penal, pauta tão identificada com a esquerda na história recente não só do Brasil, está sendo abandonado. A direita, por sua vez, redescobriu um parentesco há muito perdido com o liberalismo, e parece se importar com suas ideias centrais tanto mais quanto sofre com restrições a liberdade de expressão, prisões arbitrárias e assim por diante. Aquele que não tem o poder valoriza muito mais as suas restrições.

O senso comum, porém, ensina que não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe. O pêndulo do liberalismo permanece governado pela lei da inércia e, muito provavelmente, mudará de lado novamente no tempo de vida da grande maioria de nós. A grande vantagem das democracias, e dos estados de direito, é que, quando há essa inevitável alternância no poder, quem o perde está sempre protegido pelos exatos direitos e garantias incorporados pelas revoluções liberais.

Quando se lida com poder absoluto, entretanto, uma máxima de outra famosa obra de ficção é mais pertinente: in the game of thrones, you win or you die. Quando o poder do Estado tudo pode tirar – vida, liberdade, propriedade e até a reputação do indivíduo – quem está fora dele não tem absolutamente nada a perder e tem todos os incentivos para usar de todos os meios que estejam a disposição para haver esse poder político e exercer essa autoridade.

Como um animal encurralado, portanto, se retirada a opção de fuga, resta apenas o emprego da violência. É precisamente por isso que, em sociedades autoritárias, é muito mais frequente o recurso à barbárie que nas democracias, em que são respeitadas as regras do jogo. Nestas, dificilmente, alguém está completamente satisfeito com todas as decisões tomadas, mas é justamente essa compartimentalização do poder que permite a convivência pacífica.

History does not repeat itself, but it often rhymes (a história não se repete, mas, frequentemente, rima). Se eventos históricos servem de algum parâmetro para guiar nossas ações, devemos esperar que o pêndulo do poder – que está sempre na posição oposta ao do liberalismo – siga o seu curso em direção ao outro lado. A melhor forma de evitar que ele vá muito longe, quando isso acontecer, é justamente moderando até onde ele vai na direção atual, à esquerda. Quanto mais extremo seu balanço for para um dos lados, maior a inércia ao retornar para o outro. Se uma das partes joga sem respeito às regras, tanto maior é a probabilidade de a outra virar o tabuleiro.

Este texto, portanto, é um apelo para que todos nós, que ainda podemos exercer alguma influência no processo político da definhante democracia brasileira, o façamos em favor das regras do jogo, independentemente do lado preferido do pêndulo. A médio prazo, um deslocamento menor do pêndulo, sem que alcance os extremos, interessa a todos. O apelo, então, é, mais especificamente, para que se abandonem teses mirabolantes como a da “democracia militante”, que é mais um instrumento – muito mais retórico do que propriamente teórico – para exercer poder absoluto em nome do combate a autoritários adversos. Nada justifica instrumentalizar o poder do Estado contra os adversários políticos.

Sempre haverá aqueles, embriagados pelo poder em excesso, que insistirão no seu direito de exercê-lo. Sic semper tyrannis. Aos demais, escolhas amargas são necessárias. Não é fácil frear o pêndulo, pois ele costuma atropelar quem tenta impor limites ao seu deslocamento. Aos que se juntarem a nós nessa aventura, tão frequentemente solitária, que possamos ser uma fellowship, disposta a sofrer todos os percalços da jornada.

É como a conversa entre Gandalf a Frodo: “I wish it need not have happened in my time,’ said Frodo. ‘So do I,’ said Gandalf, ‘and so do all who live to see such times. But that is not for them to decide. All we have to decide is what to do with the time that is given us’.”

Cairo Trevia é advogado formado pela Universidade Federal do Ceará, pós-graduado em Direito Tributário e Contabilidade Tributária pela Faculdade Brasileira de Tributação. Júlia Lucy é graduada em Ciência Política pela UnB, foi deputada na Câmara Legislativa do Distrito Federal entre 2019 e 2022, é servidora pública concursada do CNJ, além de professora e diretora de relações institucionais da Associação Comercial do Distrito Federal.

Conteúdo editado por:Bruna Frascolla Bloise
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