A recente visita de Henry Kissinger à China, onde foi recebido com honras de Estado e a pretexto de comemorar seu centésimo aniversário, passou como fato subdimensionado, ofuscado talvez pela inusitada idade do visitante. Ex-chanceler dos governos republicanos dos Estados Unidos na Guerra Fria, Kissinger foi recorrente protagonista de crises internacionais, que começavam e terminavam no ritmo de sua vertiginosa agenda.
Exímio negociador, com o estofo de arguto estudioso da história das relações internacionais, claramente não era apenas um burocrata a mais ma Casa Branca. Bem além, esdrúxulo primeiro ministro oficioso, atuava como formulador e aplicador de políticas de Estado, na rígida bipolaridade permeada de riscos nucleares, de oposição permanente entre Washington e Moscou.
Agora, a foto de Kissinger centenário em Pequim, apertando a mão de Xi Jinping parece estranha, como uma fratura de tempo. De desconstrução da cronologia, a fazer refluir os pretéritos medos da Guerra Fria que se estimava superada, mas que ressurge insidiosa e agravada. É que avultam contendas de natureza multipolar, imprevisíveis e incontroláveis, com a fragmentação das tantas peri-rússias belicosas, com a desunião europeia e com o crescente e inevitável confronto sino americano.
Nascido na Alemanha, o que impedia sua candidatura presidencial, Kissinger foi guardião das chaves mestras do Pentágono, sempre professor de fundo e forma, conselheiro em off de presidentes de todos os partidos
Na outra viagem de Kissinger, a outra China, nos frenéticos anos de 1970, decerto o contexto era diverso, a levar pela mão o presidente Nixon em impensada visita a Mao Tsé-Tung. Aproximação lenta, como mandava o confucionismo, a começar pela diplomacia do ping-pong, esporte da alma chinesa, com atletas dos Estados Unidos a atuar como agentes de distensão. Em clima de astúcia, minava-se o poderio soviético, em cenário rigidamente dividido: o ocidental e suas democracias e a União Soviética e seus satélites europeus, mais a China e enclaves diversos na Ásia e na África. Limitadas por conflitos locais, no entanto, as duas super potências eram contidas pela certeza de que guerra direta seria mútua destruição nuclear assegurada e o suicídio coletivo da humanidade.
Porém, essa abertura histórica não foi único feito marcante de Kissinger. Se bem que muitos lhe atribuem culpas deploráveis de intervenção estrangeira, é certo que atuou, já em parceria com os chineses, nas negociações de Paris para o fim da guerra do Vietnã, bem como na criação de modus vivendi entre Israel e países árabes, o que chegou a prosperar por algum tempo.
Curiosamente, vulto da política externa, Kissinger nunca foi político interno. Nascido na Alemanha, o que impedia sua candidatura presidencial, foi guardião das chaves mestras do Pentágono, sempre professor de fundo e forma, conselheiro em off de presidentes de todos os partidos. Conhecedor da ascensão e queda das potências hegemônicas, desenvolveu a concepção da paz e prosperidade a serem atingidos pela humanidade, embora como objetivos de consecução difícil e a longo prazo.
Em 1978, já desalojado do poder pelo governo democrata de Jimmy Carter, Kissinger visitou Brasília sem pompa e circunstância. Visita acadêmica, palestrou em evento da Editora UnB, sempre acompanhado pelo professor e depois embaixador Carlos Henrique Cardim. Não falou sobre as guerras. Falou sobre Tocqueville, autor clássico francês e de sua devoção de scholar. Foi academicamente neutro, com prudência e moderação; sem confissões ou segredos nos brindou apenas com magnífica aula. Neófito professor, pude privar de conversas de passos perdidos pelo campus em férias, a acompanhar o já encanecido conferencista, disponível a ouvir perguntas difíceis e respondê-las com a simplicidade e a nonchalance dos sábios. Ganhei um exemplar de A democracia na América, com data e dedicatória, além da lembrança indelével da memorável jornada.
Jorge Fontoura é advogado e professor.
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