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| Foto: Nicholas Kamm/AFP

Como entender a reviravolta bizarra nos eventos que envolvem Paul Manafort?

Há dois meses ele fechou um acordo de delação com o conselheiro especial Robert Mueller – confessou-se culpado, mas concordou em fornecer todo tipo de informação verdadeira em troca de uma pena mais leve. Acontece que, de acordo com um documento da equipe de Mueller, com data de 26 de novembro, Manafort mentiu para seus membros repetidas vezes, e após inúmeros avisos. Resultado: agora está em uma posição muito pior do que se tivesse decidido não cooperar ou se tivesse cumprido o que prometeu.

O que tem na cabeça? Todas as explicações disponíveis para a escolha do caminho da autodestruição parecem, no melhor dos casos, totalmente implausíveis. Qual hipótese, então, seria a menos improvável?

Antes de repassá-las vamos relembrar rapidamente o caso: Manafort, que foi presidente da campanha de Donald Trump, em 2016, durante meses se recusou a cooperar com Mueller diante do que parecia uma série esmagadora de acusações de fraude e a perspectiva de pelo menos dois julgamentos catastróficos em relação às finanças. Sua recusa, apesar da montanha de provas irrefutáveis, foi uma jogada inconsequente e ambiciosa, e levantou a especulação de que havia algo do qual o público não tinha conhecimento, como a promessa secreta de perdão do presidente se ficasse de boca fechada.

De acordo com um documento da equipe de Mueller, com data de 26 de novembro, Manafort mentiu para seus membros repetidas vezes, e após inúmeros avisos

Acontece que, na hora de Manafort mostrar sua mão, no primeiro julgamento, descobriu-se que não tinha nenhum ás – e acabou condenado por inúmeros crimes, que acabaram equivalendo quase a uma prisão perpétua. Aí, pouco antes do início do segundo julgamento, de repente mudou de ideia e concordou com os termos de Mueller.

Agora ficamos sabendo que sua cooperação foi superficial e incompleta, uma série de prevaricações que obviamente enfureceu os promotores, que lhe deram dez dias e uma última chance de fazer a coisa direito – mas ele ignorou os alertas e agora é pouco provável que um dia deixe a cadeia, a menos que seja anistiado por Trump, o que nos leva a:

Hipótese nº 1: a promessa de anistia

Será que o presidente prometeu secretamente socorrer Manafort, contanto que este resista a Mueller? Só assim sua conduta confusa faria algum sentido – mas a lista de implausibilidades é longa.

A perspectiva de anistia sempre esteve na jogada, desde o início, mesmo quando Manafort decidiu cooperar. Para que ela fosse forte o suficiente para fazê-lo mudar de ideia, a certeza teria de ser maior, o que exigiria algum tipo de comunicação do presidente a dois intermediários (um na assessoria de Trump e outro, na de Manafort) e com o próprio Manafort na cadeia, onde todas as suas conversas são monitoradas.

Os riscos para todos os envolvidos em um esquema grosseiro como esse seriam enormes. Se desmascarados, significaria condenação sumária por manipulação de testemunha e, se por acaso algum deles for advogado, expulsão da ordem. Para o presidente, seria caso de impeachment, e até uma condenação no Senado não ficaria descartada. Por fim, Manafort teria de contar com a boa-fé de Trump, coisa que ninguém que conheça seus antecedentes ficaria à vontade em fazer – e, ainda assim, não o protegeria da condenação quase certa por crimes de Estado.

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Hipótese nº 2: a obsessão com um assassinato

Alguns analistas sugerem que, por ter passado a vida fazendo negócios escusos com o governo russo, Manafort talvez tema mais pela própria vida do lado de fora, onde estaria vulnerável a uma agulha venenosa a qualquer momento, do que confinado a um presídio federal.

Esse cenário sempre foi o mais parecido com o de um romance de Le Carré, e é a alta improbabilidade das outras alternativas, combinada com a intransigência de Manafort, que o faz ser levado a sério. O problema com ele, a essa altura dos acontecimentos, é que não há motivo para acreditar que quaisquer das circunstâncias misteriosas ou rocambolescas tenham mudado. Se Manafort realmente temesse o castigo acarretado pela espionagem, para começo de conversa não concordaria em cooperar e receber uma sentença reduzida – ou seja, essa hipótese não ajuda a explicar sua decisão de tentar enganar Mueller.

Hipótese nº 3: o mau jogador

Talvez Manafort, que a vida toda teve a fama de ser um apostador fanfarrão, seja simplesmente um jogador de pôquer ruim. Ele piscou quando o montante ficou grande demais e optou por dobrar a aposta, perdendo o que já tinha ganhado. Porém, a combinação de incerteza com uma vida inteira de trapaças fez com que esperasse não só ter direito a mais do que merecia ou podia, como também se safar da situação mentindo. Não é exatamente uma premissa irracional, mas de uma estupidez colossal, principalmente por estar jogando contra Mueller e não saber que cartas o conselheiro especial tem na manga.

Pois essas serão reveladas agora, em consequência da hesitação de Manafort – ou seja, Mueller vai direto para a condenação e, de quebra, ainda oferecerá ao júri detalhes das mentiras contadas durante o suposto período de cooperação.

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Isso significa traços das respostas verdadeiras às perguntas que geraram explicações mentirosas. Considerando que é quase certo que a cooperação de Manafort teve de envolver os alvos mais importantes e as provas mais irrefutáveis, o tal memorando será um verdadeiro tesouro de frutos ainda não colhidos da investigação de Mueller, principalmente com a possível conexão da campanha com a ingerência russa nas eleições. Pode conter a interpretação de Mueller para a reportagem de 27 de novembro do “Guardian”, que diz que Manafort se encontrou com Julian Assange inúmeras vezes, inclusive em março de 2016, pouco antes de assumir a direção da campanha de Trump, posição que estava tão desesperado para ocupar que até concordou em trabalhar de graça.

Por essa razão, o memorando deve ser incluído e analisado sob sigilo, mas, mesmo assim, funciona como proteção contra a possibilidade de o relatório de Mueller ser engavetado pelo Departamento de Justiça, por exemplo, sob as ordens do procurador-geral interino Matt Whitaker. No fim das contas, é o tribunal, e não Whitaker, que pode “deslacrar” o documento.

Já Manafort, antes tão ambicioso e arrojado, não tem mais nada para apostar. Tornou-se um pobre coitado sem sorte, que foi usado e hoje não tem opções – ou seja, é a concretização do pior pesadelo de qualquer apostador.

Harry Litman é ex-promotor público e ex-procurador-geral adjunto. É professor de Ciências Políticas na Universidade da Califórnia em San Diego e advoga na Constantine Cannon.
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