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O que poderá salvar a democracia e o Estado de Direito?

Os percalços do Estado Democrático de Direito não são meros acidentes de percurso. São defeitos intrínsecos ao próprio projeto. (Foto: Imagem criada utilizando Gemini/Gazeta do Povo)

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A separação de poderes é frequentemente apresentada como o pilar que sustenta o Estado Democrático de Direito. Desde Montesquieu, essa divisão – Executivo, Legislativo e Judiciário – é tratada como a barreira estrutural contra o arbítrio. Em teoria, cada poder exerce funções típicas, controla os excessos dos demais e preserva o equilíbrio institucional. Em teoria.

A realidade, contudo, revela um cenário muito menos harmonioso. O desenho constitucional promete equilíbrio; a prática entrega tensão permanente, invasões recíprocas e uma disputa incessante por centralidade. O que se costuma atribuir a “crises democráticas” ou “desvios ocasionais” é, na verdade, resultado direto da própria engenharia do sistema.

O Executivo, que deveria administrar conforme a lei, frequentemente ultrapassa seu perímetro. Governos recorrem a decretos e medidas provisórias para legislar por vias alternativas, alteram o sentido de normas aprovadas ou interferem no campo próprio do Parlamento. Não se trata apenas de excesso de vontade política, mas de uma tendência sistêmica: quem controla a máquina do Estado sempre estará inclinado a expandir seu raio de ação.

Por outro lado, o Legislativo também não é um bastião estático de moderação. Sua função de produzir normas gerais frequentemente se converte em legislar para casos específicos, atuar como instância punitiva por meio de comissões de inquérito ou interferir diretamente na administração pública. Em certos momentos, especialmente em regimes multipartidários, o Parlamento se torna o verdadeiro centro do poder: controla verbas, distribui cargos, condiciona a agenda do Executivo e define, com sutileza ou explicitamente, os limites da governabilidade. O governo, então, passa a funcionar a reboque.

Os percalços do Estado Democrático de Direito não são meros acidentes de percurso. São defeitos intrínsecos ao próprio projeto. E, enquanto o sistema permanecer alicerçado sobre uma ficção política – a vontade geral – continuará reproduzindo exatamente aquilo que promete combater.

Mas é talvez no Judiciário que reside a mutação mais visível. Tribunais deixam de se limitar à composição de litígios para interferir na formulação de políticas públicas, reinterpretar normas com alcance normativo expansivo, criar obrigações e determinar detalhes administrativos que tradicionalmente competem ao Executivo. Quando o Judiciário assume o protagonismo, sua condição peculiar – decidir com força coercitiva e sob o manto da imparcialidade – converte esse movimento em um superpoder de difícil contenção. Os demais poderes não resistem; ajustam-se.

Esses três cenários – Executivo dominante, Legislativo controlador, Judiciário hipertrofiado – repetem-se historicamente, alternando-se conforme o ambiente político e as conveniências das elites institucionais. A leitura convencional afirma que esse quadro exige maior vigilância democrática, aperfeiçoamento de práticas e respeito estrito à Constituição. Mas essa explicação, embora sedutora, não atinge o núcleo do problema. O que está em jogo não é uma falha de execução, mas um erro de projeto.

O Estado Democrático de Direito repousa sobre a ideia de vontade geral: a crença de que o povo, enquanto corpo coletivo, expressa uma orientação racional para o bem comum. A história, porém, insiste em contrariar essa esperança. A multidão escolheu Barrabás, legitimou ditadores, destruiu monarquias para instaurar tiranias revolucionárias, aclamou líderes que, uma vez no poder, a subjugaram. A vontade geral mostrou-se volátil, passional e manipulável – mais próxima do “homem-massa” descrito por Ortega y Gasset do que do cidadão racional imaginado pelos teóricos do Iluminismo.

E é precisamente nesse terreno movediço que as elites prosperam. Onde a massa não governa, alguém inevitavelmente governará em seu nome. O mantra “governo do povo, pelo povo e para o povo” converte-se, então, em cortina retórica destinada a ocultar os verdadeiros centros de poder. Os interesses do Estado passam a espelhar os interesses da elite: na Inglaterra, a força financeira concentrada na City of London; nos Estados Unidos, a influência de Wall Street e do complexo industrial-militar; e, em praticamente todo o Ocidente, a ascendência de grupos econômicos, tecnocráticos ou burocráticos que detêm a condução efetiva das decisões públicas.

O povo elege o político, não a política. E, quando a elite aristocrática se corrompe, deixa de ser um estamento de serviço e se transmuta em oligarquia, convertendo o poder em instrumento de autoconservação e não de bem comum.

Assim, os desvios institucionais que se observam nos regimes democráticos não são exageros episódicos de governantes ousados nem patologias sanáveis por manuais cívicos. São manifestações necessárias de um sistema que promete equilíbrio, mas produz hierarquias; promete participação popular, mas entrega oligarquias; promete contenção do poder, mas multiplica, incessantemente, novos espaços de expansão institucional, alimentando um Estado que cresce em proporções pantagruélicas e que, ao se dilatar, comprime, sufoca e por fim aniquila as liberdades individuais que jurava proteger.

A democracia liberal moderna vive dessa contradição. Proclama-se governo do povo, mas funciona como governo de minorias organizadas. Aspira ao equilíbrio entre poderes, mas gera protagonismos alternados, conflitos recorrentes e zonas de superpoder. Defende a vigilância cidadã, mas se apoia em uma vontade geral que raramente existe e facilmente se dissolve.

E é por isso que os percalços do Estado Democrático de Direito não são meros acidentes de percurso. São defeitos intrínsecos ao próprio projeto. E, enquanto o sistema permanecer alicerçado sobre uma ficção política – a vontade geral – continuará reproduzindo exatamente aquilo que promete combater.

E, então, o leitor perguntar-me-á: qual a solução?

Não fugirei à pergunta.

O debate contemporâneo sobre como conter o gigantismo estatal e a tendência de oligarquização do poder costuma girar em torno de reformas administrativas, ajustes fiscais e mecanismos de controle institucional. No entanto, uma alternativa mais profunda – e historicamente comprovada – emerge quando se revisita o municipalismo medieval, experiência que articulou liberdade política e coesão social sem recorrer ao Estado centralizado moderno.

Na Idade Média, ao contrário do imaginário popular, o rei não exercia autoridade absoluta. O poder era amplamente descentralizado, e os municípios funcionavam como núcleos reais de autogoverno. A vida política repousava sobre um pluralismo normativo que conferia ao direito um caráter social, não estatal. Usos e costumes locais, tradições comunitárias, éditos régios, direito canônico, direito romano, estatutos das guildas e a autoridade dos doutos compunham um sistema jurídico orgânico, denso e enraizado na experiência concreta das populações. A normatividade surgia das comunidades, e não do centro político.

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Esse arranjo foi desmantelado pela Revolução Francesa e, especialmente, pelo projeto napoleônico de unificação jurídica. A centralização converteu-se em princípio absoluto. Os códigos substituíram as tradições locais; as corporações de ofício foram abolidas; e o indivíduo – antes protegido por redes concretas de solidariedade – foi lançado na modernidade como átomo isolado. O mestre, o aprendiz e o companheiro deram lugar ao operário urbano, deslocado, solitário e sem qualquer proteção contra o crescente poder estatal.

O resultado foi paradoxal. Ao destruir as comunidades que supriam necessidades cotidianas – assistência, formação profissional, proteção social – o Estado gerou carências que depois usaria como justificativa para sua própria expansão. Previdência, saúde, educação e toda a constelação de serviços estatais não surgiram para preencher um vazio natural; surgiram para substituir funções que as comunidades exerciam espontaneamente. Assim se formou o Estado hipertrofiado que hoje conhecemos, um ente que cresce com base nas demandas que ele próprio cria e que, ao se expandir, reduz as liberdades que afirma preservar.

Se o problema é estrutural, a solução não está em sofisticar o Estado central, mas em redesenhar os fundamentos da própria democracia. Os sinais apontam para dois pilares essenciais.

Primeiro, uma democracia de base comunitária, não de massa. O autogoverno autêntico só floresce em unidades políticas pequenas, coesas e dotadas de autonomia substancial – como as comunas medievais ou os cantões suíços. Onde a política é exercida pela massa, abstrata e manipulável, a oligarquia se instala com facilidade. A democracia, para existir de fato, começa no município.

Segundo, um Estado magro e subsidiário, limitado a poucas funções essenciais. A contenção do poder só é possível quando o Estado renuncia à tentação de tutelar todas as dimensões da vida social. Sua intervenção deve ser residual, e não expansiva; pontual, e não totalizante.

Mas nenhum desses elementos se sustenta sem o componente estrutural que a modernidade centralizadora eliminou: a descentralização legislativa. A autonomia política exige autonomia normativa. É preciso devolver aos municípios e regiões a prerrogativa de legislar segundo suas tradições, costumes e necessidades, reservando ao plano nacional apenas aquilo que realmente constitui interesse comum. Sem pluralismo normativo, toda descentralização administrativa permanece ilusória.

A conjunção desses princípios delineia uma possível saída para o impasse contemporâneo: uma República verdadeiramente subsidiária, federativa e comunitária, constitucionalmente estreita e dotada de limites formais que impeçam o crescimento descontrolado do Estado e a formação de castas burocráticas. É um modelo que busca reconstruir a liberdade concreta por meio da descentralização radical – política, administrativa e legislativa – resgatando a vitalidade dos corpos intermediários destruídos pelo centralismo moderno.

O futuro da democracia e do Estado de Direito, se pretende sobreviver às deformações oligárquicas que hoje a ameaçam, não está no Estado central. Está no município.

Márcio Luís Chila Freyesleben é jurista e escritor.

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