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A famosa frase de Dostoievski – “sem Deus e a vida imortal, tudo é permitido” – resume muito bem a situação atual da cultura ocidental.

A ideia de chamar a união homossexual de “casamento” era inimaginável nos anos 60. Hoje, no entanto, o princípio ordenador não é mais a ordem da criação e o bem comum da sociedade, mas a ideia de que cada indivíduo pode, de forma legítima, ter sua própria noção de bem, noção que ninguém pode desafiar. Na proposição do filósofo de Harvard John Rawls, se alguém quer passar a vida contando folhas de grama, então este é o seu conceito de “vida boa” (no sentido de vida virtuosa), e ninguém tem moral alguma para questionar esta ou qualquer outra visão do que seja uma vida boa.

Na área da sexualidade, isso significa que todas as escolhas sexuais seriam igualmente válidas. O festejado filósofo da Universidade de Princeton Peter Singer defende ser moralmente aceitável que alguém tenha um relacionamento sexual com seu animal de estimação. Se uma pessoa e seu cão aparentemente se amam, por que não permitir que se casem? Da mesma forma, se alguém prefere ter múltiplos parceiros sexuais e tem as condições para mantê-los, o que haveria de errado com a poligamia?

Hoje, o princípio ordenador é a ideia de que cada indivíduo pode ter sua própria noção de bem, noção que ninguém pode desafiar

O ex-arcebispo anglicano de Canterbury Rowan Williams já observou que, uma vez que a Igreja da Inglaterra aceitasse a contracepção, perderia a moral para condenar a prática homossexual. A contracepção dissocia as dimensões unitiva e procriativa do ato sexual. A tese de Williams era a de que, se isso é aceitável, então logicamente o sexo homossexual também o é.

A Igreja Católica tem se oposto firmemente à prática da contracepção justamente por defender que não é lícito separar as dimensões unitiva e procriativa da intimidade sexual humana. No ato conjugal, os casais potencialmente participam do poder criativo da Santíssima Trindade. O sexo “contraceptivo” é a profanação de algo santo.

A divisão entre católicos e representantes do lobby homossexual é uma divisão entre as pessoas que acreditam em um cosmo sacramental – ou seja, um mundo em que Deus e a graça são tão reais quanto o que pode ser tocado e quantificado – e aqueles que não mais creem que o ser humano foi criado por Deus de acordo com um arranjo particular que precisa ser observado para que se participe na própria vida divina.

Aqueles que tentam defender a normatividade heterossexual recorrendo ao conceito de “casamento natural” ou “casamento tradicional” cometem um erro estratégico fatal. Antes do Cristianismo, o casamento era, muito frequentemente, algo um tanto bruto. Como observou o filósofo político James Schall, “se tratarmos o homem como meramente natural, sem dúvida alguma ele acabará se tornando menos que natural (...) o princípio não deve ser compreender corretamente sua finalidade natural para que ele seja feliz, mas compreender corretamente sua finalidade sobrenatural, do contrário não será possível nem mesmo compreender corretamente sua finalidade natural”.

Ou o casamento é um sacramento, e o ato conjugal é a participação no poder criativo da Trindade, ou então a intimidade sexual pode ser meramente recreativa. E, se concordarmos que ela pode ser meramente recreativa, por que ela não pode ser regulada pelas mesmas leis contratuais civis que regulam outros esportes? O que ela tem de especial, se no fim trata-se apenas de prazer unitivo?

Tracey Rowland, decana do Instituto João Paulo II para o Matrimônio e a Família, em Melbourne (Austrália), é autora de A fé de Ratzinger e membro da Comissão Teológica Internacional. Tradução: Marcio Antonio Campos.
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