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O silêncio que mata: como a omissão alimenta a violência

Violência contra a mulher cresce, mas a resposta do Estado é lenta e insuficiente. (Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo)

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Ela chegou à delegacia no fim da tarde, os olhos marejados e o braço enfaixado, sustentado com dificuldade. Trazia nas mãos um boletim de ocorrência amassado, como se quisesse expulsar, no papel, a dor que carregava no corpo. A voz quase não saía. Quando conseguiu falar, implorou: “Que eu não seja morta…”

A cena, infelizmente, não é exceção — é rotina. Agosto Lilás, mês dedicado à conscientização pelo fim da violência contra a mulher, renova a cada ano a promessa de que, um dia, deixaremos de narrar episódios assim.

Mas, a cada ciclo, o noticiário nos lembra: a violência cresce, enquanto a resposta do Estado permanece aquém do necessário. Entre o pedido de socorro e a proteção efetiva abre-se um abismo: nele, o agressor prospera, a vítima silencia e a sociedade se acostuma.

A Lei Maria da Penha foi um marco civilizatório. Contudo, quem vive o Direito e observa a vida real sabe: lei sem execução célere vira formalidade. Há lacunas que, na prática, custam vidas.

A morosidade processual, a frágil fiscalização das medidas protetivas, a cultura que minimiza agressões “domésticas”, a falta de estrutura de acolhimento e a desigualdade regional na aplicação das normas transformam o que deveria ser escudo em promessa oca.

Medidas que no papel são imediatas — afastamento do agressor, proibição de contato, suspensão do porte de arma e inclusão da vítima em rede de proteção — tornam-se tardias quando o despacho demora, quando a intimação não chega e quando a fiscalização não existe.

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O tempo, nesse contexto, não é neutro: trabalha a favor do agressor. Cada audiência adiada, cada petição sem despacho, cada medida protetiva não fiscalizada soa como sinal verde para quem agride

O silêncio das vítimas, por sua vez, não revela falta de coragem — revela experiência acumulada. Elas sabem que denunciar pode acender a fúria do agressor e que a engrenagem estatal nem sempre gira na velocidade da ameaça.

Muitas mudam de endereço, perdem vínculos, abandonam o trabalho. Outras recuam, por medo de que a proteção seja apenas retórica. E medo com razão.

Se agosto é mês de campanha, que seja também de cobranças objetivas. Há caminhos concretos e exequíveis. Primeiro: monitoramento eletrônico obrigatório para descumprimento de medida protetiva, com resposta policial automática, em minutos — não pode depender do acaso.

Segundo: plantões judiciais especializados, inclusive aos fins de semana, para decisões em horas, não em dias. Terceiro: integração real entre Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Polícia Civil e Militar, com fluxos padronizados, prazos máximos e protocolo de risco, para que a urgência não dependa do humor da repartição.

É preciso também enfrentar o argumento cômodo de que “a lei existe, falta aplicá-la”. Falta, sim, mas não apenas. Algumas previsões legais precisam ser revistas à luz da realidade do território: cidades do interior sem delegacias especializadas, comarcas extensas, distâncias que impedem cumprimento ágil de ordens judiciais.

Equilíbrio social não se alcança com norma abstrata e orçamento minguado. É necessário orçamento protegido para a política de enfrentamento, indicadores transparentes, auditoria cidadã e responsabilização de gestores quando metas forem descumpridas.

Há, ainda, o fator cultural, que nenhuma lei resolve sozinha. O “em briga de marido e mulher não se mete a colher” foi substituído, em muitos lugares, por uma polidez indiferente que troca a omissão pela desculpa: “não é da minha conta”.

É da nossa conta. Vizinhos, familiares, colegas e instituições precisam compreender que sinais de controle, humilhação e isolamento antecedem quase sempre a agressão física. Intervir cedo salva. A ética da vizinhança — essa vigilância solidária — é parte do sistema de proteção.

Volto à mulher do início. Ela não pediu um favor: pediu o mínimo — continuar viva. O que ela esperava era previsibilidade institucional: registrar, obter a medida, ser protegida. Não é utopia; é dever jurídico. Quando falhamos, não é apenas uma pessoa que sucumbe: é a promessa constitucional de dignidade que se quebra.

Agressores aprendem com a demora; vítimas, com a ausência. Um aprende a explorar o relógio; a outra, a temer o calendário. A repetição desse aprendizado social alimenta a espiral de violência.

Agosto Lilás não pode terminar no dia 31. A coluna de hoje é um lembrete e um compromisso: violência doméstica não é assunto de campanha, é política de Estado. Se queremos, de fato, honrar as mulheres que sobreviveram e as que não tiveram tempo, precisamos transformar o rito da urgência em rotina administrativa.

O que mata não é só a mão que agride; é o conjunto de omissões que permite que ela se erga, de novo e de novo, sem consequência. Porque o silêncio não é ausência de som. É o eco do que não foi feito quando ainda era possível salvar uma vida.

Clotilde Rocha é advogada, jornalista e escritora.

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