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O verme na maçã: como a China corroeu a Apple por dentro

A Apple ficou vulnerável ao apostar na China, priorizando lucro imediato e transferindo conhecimento que fortaleceu a manufatura chinesa. (Foto: Gerd Eichmann/Wikimedia Commons)

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Cydia pomonella, mais conhecida como a traça-das-maçãs ou verme-da-maçã, deposita seus ovos nas maçãs. Assim que as larvas eclodem, começam a perfurar o interior da fruta. As larvas não são capazes de consumir folhas; portanto, precisam se alimentar da polpa da maçã. Isso, por sua vez, permite que elas cresçam enquanto a fruta amadurece prematuramente, se deteriora e apodrece de dentro para fora.

O livro "Apple na China: A captura da maior empresa do mundo", de Patrick McGee, explora como a gigante de tecnologia Apple usou a China para se tornar ao mesmo tempo extremamente valiosa e vulnerável, enquanto a China usou a Apple para aperfeiçoar suas capacidades de manufatura.

Segundo McGee, “a Apple convenceu Pequim de que não era apenas uma comerciante na China, mas uma espécie de patrona e mentora, financiando, treinando, supervisionando e abastecendo fabricantes chineses”. Ou, em termos mais botânicos, a Apple entrou inadvertidamente em uma relação simbiótica com a China, semelhante à da traça e da fruta: uma—Apple—está sendo consumida e corre o risco de apodrecer, enquanto a outra—China—continua a crescer e se expandir.

Como a Apple acabou em uma posição tão precária? De acordo com McGee, foi tudo por acaso. Ele argumenta que “ninguém na Apple realmente arquitetou a mudança para a China; mas, em uma oportunidade após outra, as operações da empresa foram atraídas para o país”.

Nos últimos 25 anos, a Apple remodelou inadvertidamente a geopolítica entre os Estados Unidos e a China por meio de sua estratégia de manufatura. Essa remodelação, no entanto, ocorreu de forma furtiva e não intencional, já que a Apple era movida apenas por lucros de curto prazo. McGee resume assim: “O que a Apple percebeu foi que, inadvertidamente, sua presença na China estava possibilitando uma transferência de tecnologia em escala extraordinária”.

Entender a manufatura terceirizada e como a Apple concentrou suas operações em um único país é fundamental no livro de McGee. A terceirização da produção para fabricantes parceiros permitiu que a Apple se concentrasse em design e desenvolvimento de produtos, deixando os riscos e a logística da produção para outras empresas. Ao longo do livro, McGee narra a progressão constante da estratégia de terceirização da Apple.

No início da história da Apple, a produção era concentrada nos Estados Unidos. Em 1976, o Apple I foi montado na sala da irmã grávida de Steve Jobs, Patty. Sentada no sofá, assistindo novelas ou conversando ao telefone, ela montava as peças na placa de circuito.

O Apple II expandiu esse sistema. Como descreve McGee: “A cada poucos dias, eles entregavam os kits a uma dona de casa de Los Altos, que coordenava uma rede fragmentada de operações de montagem espalhadas por casas e apartamentos cheios de mulheres imigrantes do Sudeste Asiático e mexicanas sem documentos”.

Essa estratégia mudou nos anos 1980, quando a Apple começou a terceirizar a produção para países como Japão e Taiwan. Isso funcionou por cerca de uma década, até que a manufatura em Taiwan acabou migrando para a China:

“Os taiwaneses estavam aprendendo rápido, evoluindo de simples executores de pedidos para parceiros respeitados. … Taipei encerrou, em 1987, uma proibição de 38 anos de viagens à China, abrindo o continente para o comércio. Em menos de uma década, empresários taiwaneses construíam grandes fábricas na China continental, ensinando seus aprendizes em mandarim e atraindo algumas das maiores marcas de PCs do mundo.”

A ponte de manufatura Taiwan-China é central na narrativa de McGee. Em especial, ele defende que um único fabricante contratado—a Foxconn—foi responsável por deslocar a produção da Apple para a China.

“A Foxconn, um fabricante terceirizado taiwanês que aproveitava a mão de obra barata da China continental, estava totalmente voltada para o cliente”, escreve McGee. O CEO da Foxconn, Terry Gou, desenvolveu uma parceria próxima com a Apple e desempenhou papel crucial na migração gradual da empresa para a China.

Essa relação de terceirização foi simbiótica: a Apple negociava contratos com margens quase nulas para a Foxconn, enquanto esta aprendia habilidades e conhecimentos inestimáveis. McGee explica:

“Gou entendeu antes de qualquer um que o valor de trabalhar com a Apple não estava no lucro, mas no aprendizado. A Foxconn podia até perder dinheiro em alguns contratos, mas o trabalho em si—com engenheiros da Apple lado a lado com os trabalhadores locais—proporcionava uma profunda formação para sua equipe.”

O que os fornecedores locais aprenderam com a Apple permitiu que conquistassem novos clientes com margens de lucro bem maiores. A perda de curto prazo se converteu em ganhos de longo prazo por meio da aquisição de conhecimento.

Esse ponto é central na tese de McGee: lucro não é apenas financeiro.

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Embora a Apple tenha obtido ganhos enormes em curto prazo com a Foxconn, esta e a própria China lucraram ainda mais no longo prazo com conhecimento e capacidade de produção

A Apple buscava os relatórios trimestrais; Foxconn e China buscavam o futuro.

McGee enfatiza que houve consequências não intencionais: “A Apple fazia investimentos espetaculares na China; só que as contribuições não estavam dentro do iPhone, mas nas máquinas e processos que o produziam.” Engenheiros da Apple eram enviados continuamente para a China para treinar trabalhadores locais.

O que manteve a Apple nesse caminho foi o sucesso de curto prazo: lucros crescentes e custos reduzidos. McGee observa que a estratégia era eficaz: “Casava o melhor dos dois mundos: controle rígido dos processos de produção, mas com custos menores e a flexibilidade de não operar diretamente uma fábrica.”

Contudo, relatórios de investidores e conferências financeiras não captavam o escoamento de conhecimento que ocorria. Conhecimento, habilidade e capacidade não aparecem em balanços, mas têm valor de longo prazo incalculável.

Yi Wen, economista do Federal Reserve de St. Louis citado por McGee, afirma que a aquisição de conhecimento foi a “receita secreta por trás da Revolução Industrial da Inglaterra no século XVIII, assim como da China nas últimas quatro décadas”.

A erosão desse conhecimento prejudicou gravemente a Apple e a indústria nos EUA. Em 2019, Tim Cook prometeu fabricar o Mac Pro no Texas. A Apple até conseguiu, mas precisou trazer engenheiros da Foxconn da China para treinar os americanos—a prova de sua dependência.

No final, McGee mostra como a Apple tenta “reduzir riscos” diversificando sua produção para a Índia. Porém, 90–95% da produção ainda ocorre na China, e um rompimento completo custaria centenas de bilhões de dólares.

Sua crítica é dura: o capitalismo orientado ao acionista levou empresas como a Apple a ignorar o interesse nacional em favor de ganhos imediatos. Cupertino e Washington hoje têm interesses divergentes, o que pode manchar o legado de Tim Cook.

McGee convence ao mostrar que a Apple seguiu cegamente os lucros de curto prazo rumo a uma relação de dependência com a China. Ainda assim, ele discute pouco a raiz dessa miopia lucrativa. O problema não é só da Apple, mas do modelo econômico americano.

Como lembrava Santo Agostinho:

“O ouro é amado de forma errada pelos avarentos quando abandonam a justiça por causa dele. A culpa não está no ouro, mas no homem. Toda coisa criada é boa, mas pode ser amada corretamente ou incorretamente—corretamente quando a ordem é preservada, incorretamente quando a ordem é invertida.”

A busca da Apple pelo lucro inverteu a ordem e minou o bem comum. Convidou o “verme da maçã” para dentro de si em troca de ganhos imediatos. No longo prazo, porém, o florescimento foi transferido para a China.

A saída, sugere McGee, passa não apenas por diversificar para a Índia, mas por unir lucro com virtude, ordem e bem comum. Caso contrário, o risco é que o apodrecimento avance além do ponto de retorno.

A. Trevor Sutton é pastor sênior da Igreja Luterana St. Luke em Lansing, Michigan, e leciona teologia na Universidade Concordia-Irvine. Sutton escreveu vários livros, incluindo "Redeming Technology" (em coautoria com Brian Smith, MD) e "Autêntico Cristianismo" (em coautoria com Gene Edward Veith Jr.).

©2025 Acton Institute. Publicado com permissão. Original em inglês: The Worm in Apple’s Success

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