
Ouça este conteúdo
Alguns chamam de “Watergate britânico”. Outros dizem que é muito maior. Mas o que está documentado é simples: por quase dois anos, governos de cores diferentes — Conservadores (Tories) e Trabalhistas — trouxeram, em sigilo, dezenas de milhares de estrangeiros para hotéis e bases militares no Reino Unido, sem informar o Parlamento nem o público.
Quando a história ameaçou vir à tona, enterraram-na sob o mais draconiano instrumento jurídico à disposição: uma super-injunction — uma mordaça que não apenas proíbe a imprensa de reportar o caso, mas também de reportar que existe uma ordem judicial proibindo o caso.
Tudo começou com um erro monumental: um fuzileiro real enviou, duas vezes, um arquivo contendo dados sensíveis de quase 19 mil afegãos — nomes, telefones, endereços — diretamente para contatos no Afeganistão controlado pelo Talibã. Era fevereiro de 2022.
O governo alegou que estava “salvando aliados em risco” — intérpretes, soldados, administradores que ajudaram a coalizão na guerra fracassada. Mas a operação de “resgate” rapidamente degenerou em algo muito mais familiar: censura, encobrimento e manipulação.
A versão oficial dizia que o Talibã ainda não tinha o arquivo. A realidade — hoje confirmada — é que eles já o possuíam um ano antes de o Ministério da Defesa admitir o vazamento. O risco, portanto, não era proteger vidas, mas proteger reputações e agendas políticas.
O Judiciário foi cúmplice, talvez protagonista. Um único juiz decidiu que a mordaça total era “justificada” — mesmo reconhecendo que violava a liberdade de imprensa e de expressão
O caso foi mantido sob segredo absoluto durante governos sucessivos, com recursos e renovações da ordem judicial sempre aprovados, enquanto bilhões de libras do contribuinte eram gastos em um programa de reassentamento expandido e protegido por camadas de opacidade.
Nesse processo, o conceito de “aliado” foi elástico: entre os beneficiários, surgiram relatos de simpatizantes do Estado Islâmico, colaboradores do Talibã e indivíduos envolvidos em crimes contra soldados britânicos.
A triagem — quando feita — foi insuficiente. Ainda assim, chegaram dezenas de milhares, muitos trazendo famílias numerosas (segundo a média afegã, um requerente pode significar até oito pessoas). O número real de reassentados pode ultrapassar 120 mil.
Enquanto isso, veteranos britânicos, muitos feridos em combate, eram ignorados em filas de moradia — ou despejados — para dar lugar a recém-chegados. Em alguns municípios, migrantes eram instalados em hotéis cinco estrelas enquanto ex-combatentes dormiam no carro.
Tudo isso foi escondido do eleitorado até depois da eleição de 2024. Não por acaso: a manutenção da super-injunction permitiu que os eleitores fossem às urnas sem saber que o Estado britânico, sob dois partidos, conduzia um programa de imigração massiva, sigilosa e mal controlada. É difícil não ver aí uma forma de interferência eleitoral.
A lição é clara: o vazamento foi grave, mas o verdadeiro escândalo foi o que veio depois — o uso calculado do segredo de Estado para blindar decisões políticas, neutralizar a imprensa e reconfigurar silenciosamente o país, sem o consentimento nem a consciência de seus cidadãos. Isso não é falha. É método.
O establishment britânico, traumatizado pelo Brexit, quis, evidentemente, modificar zonas eleitorais com eleitores fidelizados. Dividir o poder com a falsa dicotomia conservadores (tories) e trabalhistas era o objetivo, evitando imprevistos como foi a saída da União Europeia.
Nigel Farage, mais uma vez, rompeu essa falsa polarização e, como no Brexit, atingiu, com o Reform UK, significativos resultados, escanteando os conservadores e resgatando o nacionalismo inglês. Seu objetivo: Downing Street. Veremos.
Marcos Paulo Candeloro é graduado em História (USP), pós-graduado em Ciências Políticas (Columbia University- EUA) e especialista em Gestão Pública Inovativa (UFSCAR).



