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| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

Uma rede, uma rede de troca de conhecimento. Ideias que viajam de um lugar para o outro rapidamente, com as melhores sendo constantemente testadas e aperfeiçoadas. Essa é a explicação do jornalista inglês Simon Kuper e do economista americano Stefan Szymanski para a hegemonia da Europa Ocidental no futebol atual. Os pesquisadores apresentaram essa teoria no livro Soccernomics, uma reunião de estudos estatísticos para explicar fatos do futebol, como o fato de a Inglaterra sempre perder ou qual o país mais fanático pela modalidade no mundo.

A obra tem várias teorias furadas – por exemplo, eles concluem que o Lyon ganhará a Champions League a qualquer momento (o livro foi lançado há nove anos e o máximo que o time francês conseguiu foi uma semifinal) e que o Iraque entrará na elite do futebol em breve (melhor esperar sentado) –, mas a teoria da rede faz sentido. Ela toma como inspiração os estudos do historiador Norman Davies sobre como o ambiente favorável fez dessa mesma região o palco da Revolução Científica e a mais rica do globo por séculos.

De fato, o domínio europeu cresceu muito nos últimos 15 anos, quando os efeitos da globalização da modalidade se tornaram irreversíveis. Como uma das nações mais gloriosas do esporte, o Brasil percebe isso muito bem. Durante anos, um jogador daqui se transferir à Europa era apenas uma questão de vê-lo ganhar mais dinheiro. Agora, já se usa expressões como “desenvolver seu jogo” e “se testar entre os melhores”. Ainda que nosso coração esteja em um clube daqui, e é ele que nos emociona de verdade, o lado racional sabe que o melhor está do outro lado do Atlântico.

Jesús Morlan pegou um esporte desconhecido e quase sem estrutura, e em três anos entregou três medalhas olímpicas

Quando Pep Guardiola cria uma forma nova de jogar futebol, recuperando conceitos da Holanda de 1974 e trazendo-os para o século 21, o resto da Europa rapidamente absorve isso. Da Espanha para a Itália, para a Alemanha, para a Inglaterra ou para a França é um pulo. Um jogador troca mensagem com o amigo que defende o Barcelona e pergunta o que está acontecendo. O técnico vai ver o jogo in loco no dia de folga e depois marca um jantar com o colega catalão. O auxiliar é contratado por outra equipe e a rede de conhecimento mostra sua força.

Enquanto isso, aqui no Brasil, com um oceano, uma cultura de autossuficiência (soberba?), uma defasagem econômica e um calendário incompatível de distância, esses conceitos demoram anos a chegar. Isso é muito nítido no futebol, mas é ainda mais sensível em outras modalidades, cada uma tendo o seu centro de maior desenvolvimento, claro.

Há três formas de reduzir esse efeito: Criar um ambiente de competição técnica e econômica que coloque o seu país no centro da rede de troca de ideias, como os Estados Unidos fazem no basquete; contar com o surgimento de um gênio, como a dupla Bernardinho-José Roberto Guimarães com o vôlei brasileiro; ou importar esse conhecimento.

Leia também: Brasil, o país dos legados (artigo de Zair Candido de Oliveira Netto, publicado em 22 de junho de 2016)

Leia também: Fortalecer o futebol nacional (editorial de 17 de julho de 2014)

A primeira opção soa inviável na maioria dos casos, até porque exige um poderio econômico que o esporte brasileiro não tem. A segunda depende quase que do acaso. O jeito é investir na terceira, e o Brasil já fez isso várias vezes com sucesso, contratando profissionais que trouxeram o que de mais moderno havia em suas modalidades e, eventualmente, colocando atletas e times brasileiros no topo delas.

Um caso marcante, talvez o que tenha deixado o legado mais forte, foi o do japonês Mitsuyo Maeda. O professor de judô ensinou ao paraense Carlos Gracie o que se tornou a base do jiu-jitsu brasileiro, uma arte marcial nacional que se espalhou pelo mundo.

A estadia – ele se naturalizou, constituiu família e morreu em Belém – de Maeda pelo Brasil teve início na década de 1910, mas vários outros vieram depois dele. O vôlei teve o controverso sul-coreano Young Wan-Sohn, o handebol feminino foi campeão do mundo com o dinamarquês Morten Soubak, a ginástica artística entrou na elite com o ucraniano Oleg Ostapenko e o basquete voltou aos Jogos Olímpicos após 16 anos sob o comando do argentino Rubén Magnano.

Nesse grupo, poucos nomes são tão emblemáticos quanto o de Jesús Morlán. O espanhol foi contratado em 2013 para assumir a seleção brasileira de canoagem que se preparava para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. Ele pegou um esporte desconhecido e quase sem estrutura, e em três anos entregou três medalhas olímpicas.

No Brasil, com uma cultura de autossuficiência (soberba?), conceitos modernos no esporte demoram anos a chegar

Morlán identificou o potencial de Isaquias Queiroz e de Erlon de Souza e os desenvolveu. Encontrou as condições de preparação ideal em Lagoa Santa, região metropolitana de Belo Horizonte, e lá instalou a estrutura de treinamento da canoagem brasileira. Transformou-se em um pai para os atletas. Um termo já banalizado no esporte, mas que chama a atenção quando repetido tantas vezes, em tantos momentos. Foi assim quando Isaquias conquistou duas pratas – uma delas em parceria com Erlon – e um bronze nos Jogos do Rio. Foi assim em 2017, quando foi revelado que o treinador tinha um tumor no cérebro. E foi assim no mês passado, quando o espanhol não resistiu a esse tumor e faleceu em Minas Gerais.

É difícil saber qual o impacto da perda de Morlán para a canoagem brasileira. Pela forma como assumiu o trabalho e envolveu a toda a delegação, ele certamente deixou um legado que pode fazer que a modalidade siga competitiva. Mas a liderança e a referência se perdem, assim como a experiência adquirida por anos nos grandes centros da canoagem mundial (a Europa).

Um homem que abraçou o país e, com isso, o colocou dentro da rede de troca de conhecimentos até que chegasse ao topo. Que a história do espanhol inspire não apenas o futuro da canoagem, mas do esporte brasileiro como um todo. Do atletismo à luta olímpica, do beisebol ao futebol.

Ubiratan Leal é comentarista dos canais ESPN e colaborador do canal Desimpedidos.
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