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Oferecer só asilo não basta

Nem as medidas de Obama, nem as de Trump funcionaram, seja para oferecer proteção humanitária aos que merecem ou manter afastados os indesejados

 | Mark Ralston/AFP
(Foto: Mark Ralston/AFP)

Dinheiro, amor e medo.

Três boas razões para procurar um novo país. No sistema de imigração norte-americano, entretanto, encontrar um emprego, reunir-se à família e fugir do perigo são categorias mutuamente excludentes.

Mas as três são uma coisa só para os centro-americanos que se encontram hoje em nossa fronteira, e esses migrantes estão derrubando o sistema. É gente que foi forçada a deixar suas casas por causa da violência e da perda do sustento, que busca abrigo com os parentes.

Para onde você iria?

Como líderes, Barack Obama e Donald Trump pouquíssimo têm em comum, mas nenhum dos dois conseguiu acabar com a migração do “Triângulo do Norte” – composto por Guatemala, Honduras e El Salvador. Ambos tentaram impedi-la por meio do uso do policiamento, ambos sofreram reações políticas. Tanto um como o outro tentaram fazer correções tortas – como o governo atual, que passou do encarceramento sumário resultante da tolerância zero à soltura dos estrangeiros, mas com tornozeleira eletrônica. A iniciativa de Obama teve um impacto pouco duradouro. Trump levou a dissuasão a um extremo nunca antes imaginado, cometendo extorsão com crianças reféns para demover os requerentes de asilo.

O fato é que a política atual não funciona, seja para oferecer proteção humanitária aos que merecem ou manter afastados os indesejados. Cerca de 50 mil jovens desacompanhados dessa trinca de países da América Central e quase 40 mil adultos foram pegos, em 2014, durante a grande onda que chegou à fronteira. Os números cresceram novamente em 2015 e 2016 – e aqui estamos nós, em 2018, sem previsão para o fim desse drama.

Uma fração da verba reservada para vigilância, bem aplicada no desenvolvimento econômico, reduziria a pressão imigratória

Uma solução duradoura tem de reconhecer que esses picos não são eventos isolados, mas sim ações desesperadas em uma migração que ocorre há décadas. O equivalente a quase 10% da população desses países já vive aqui. É um movimento que tem fôlego, e vem de bem perto: eles chegam à nossa fronteira a pé.

Um mero policiamento não vai detê-los – certamente não o modelo que segue nossas leis. Enquanto isso, as famílias vão continuar vindo. Como estamos testemunhando mais uma vez, nosso novo programa de vistos é disfuncional. Precisamos é de um sistema concebido para o número e as características das pessoas que vêm vindo para cá.

Chegar a uma solução começa com o reconhecimento de que, sem sombra de dúvida, o melhor para eles – e para nós – seria que nem tivessem de ser forçados a deixar suas casas.

O orçamento de Trump para 2019 reserva US$ 26 bilhões para policiamento e detenção relacionados à imigração, mais US$ 18 bilhões para o muro; esses valores quase equivalem aos PIBs combinados de El Salvador e Honduras (US$ 48 bilhões). Uma fração da verba reservada para vigilância, bem aplicada no desenvolvimento econômico, reduziria a pressão imigratória – e o dólar do contribuinte seria muito mais bem utilizado, em vez de empregado para tentar interceptar pessoas em uma fronteira militarizada para depois criminalizá-las.

Não só pela questão da utilidade, é meramente a coisa certa a fazer. Intervenções norte-americanas, sejam políticas, militares ou econômicas, já ajudaram a criar condições de freio para muitas ondas migratórias, incluindo a atual.

Leia também: Vergonha americana (editorial de 21 de junho de 2018)

Leia também: A Europa dos refugiados (artigo de Jorge Fontoura, publicado em 17 de agosto de 2017)

Solucionar esse problema, tão próximo geograficamente, é do nosso interesse nacional – mas, mesmo que conseguíssemos resolver todas as questões que estão forçando esse pessoal a emigrar do Triângulo do Norte, teríamos de administrar o fluxo durante muitos anos, e não temos os meios para isso.

O primeiro problema é que nossos critérios para as admissões humanitárias foram concebidos há mais de 60 anos, ou seja, não condizem mais com a realidade. A convenção original das Nações Unidas para os refugiados, de 1951, falava de pessoas fugindo devido a “um medo inequívoco” de perseguição; características facilmente reconhecíveis como religião, raça ou visão política determinavam a qualificação, com os governos geralmente no papel de vilões. A Guerra Fria permitiu que se fizesse uma distinção muito clara entre os livres e os oprimidos.

Hoje, gangues criminosas, insurgentes armados e outros agentes não oficiais causam terror e caos em todo lugar – e a proteção de suas vítimas depende de governos individuais e das políticas do momento.

Em 11 de junho, por exemplo, com uma canetada Jeff Sessions reverteu os precedentes da era Obama que ofereciam proteção estendida a algumas vítimas de violência doméstica e criminal. “O refugiado típico foge de seu país devido à perseguição do governo”, escreveu o procurador-geral em uma decisão que hoje está sendo contestada por grupos defensores dos direitos humanos e do imigrante.

Independentemente de ser apropriada em termos legais ou não, a definição antiga não descreve as realidades contemporâneas. Quase sempre o problema não tem nada a ver com um governo opressivo; pelo contrário, administrações fracas, inclusive democracias, forçam a fuga por não conseguirem proteger seus cidadãos de desastres tanto naturais como criados pelo homem.

O melhor para eles – e para nós – seria que nem tivessem de ser forçados a deixar suas casas

A violência sem controle, combinada com a degradação ambiental e o colapso econômico, resulta naquilo a que o professor da Oxford Alexander Betts se refere como “migração de sobrevivência”. “O termo descreve aqueles que deixaram seu país de origem por causa de uma ameaça existencial para a qual não há solução interna”, escreve ele.

Os padrões de 1951 podem até ser “esticados” para incluir aqueles que fogem sob tais condições; entretanto, Sessions e os restricionistas europeus fazem uso da lei literal, por mais antiquada que seja, como base da rejeição. Ao mesmo tempo, revogam o direito do migrante, consagrado nesses mesmos acordos internacionais, de buscar proteção, mesmo que isso implique em violar as leis em vigência.

Migrantes de Honduras, Guatemala e El Salvador que pedem asilo enfrentam um processo extremamente difícil e antagônico criado justamente para dificultar e rechaçar. A proporção das rejeições dos últimos anos chega aos 80%, de acordo com o banco de dados Trac, da Universidade de Syracuse. Por outro lado, a maioria de requerentes de países como China, Eritreia e Etiópia vê seus processos aprovados; é uma questão de política, não de lei.

Os EUA têm o hábito de assumir abordagens individuais em relação às ondas migratórias humanitárias, dificultando ou facilitando o processo de acordo com os interesses nacionais. Já houve soluções especiais para húngaros, cubanos, judeus soviéticos, nicaraguenses e muitos outros; agora é hora de encontrar uma solução específica para o Triângulo do Norte.

Para lidar com essa diáspora de forma eficaz e humana, é necessária uma solução legislativa além do sistema de asilo, que estabeleça um processo legal baseado nas circunstâncias específicas de tal migração, principalmente seu volume e duração.

Mais de 3 milhões de pessoas dessas três nações hoje vivem aqui; a grande maioria há mais de dez anos, de acordo com os cálculos do Centro de Pesquisas Pew. O fluxo anual de guatemaltecos, hondurenhos e salvadorenhos – foram cerca de 115 mil chegadas em 2014 – vem aumentando a uma proporção duas vezes maior que o da imigração em termos gerais.

Rodrigo Constantino: Imigração descontrolada (16 de fevereiro de 2017)

Nossas convicções: O alcance da noção de dignidade da pessoa humana

Quando as condições de vida começam a ameaçá-la, a migração é a salvação mais fácil e rápida. E, embora a jornada seja perigosa e cara, os canais entre o lá e o cá são acessíveis e eficientes – do contrário, como milhares de crianças percorreriam mais de 2,4 mil quilômetros sozinhas?

Criar a opção legal efetiva para os imigrantes que nem o governo Obama, nem Trump conseguiram impedir vai exigir uma reforma no sistema atual, para acabar com o que, no passado, já foram considerados “casos especiais”. Em vez de tratar os migrantes do Triângulo do Norte como requerentes de asilo individuais, uma nova categoria de admissão analisaria os seus diversos motivos – medo, amor e dinheiro, todos juntos e misturados. O número de admissões crescerá, mas não superará em muito os 300 mil casos atuais, relegados à demora e ao acúmulo que não param de crescer.

Trump não se mostra muito interessado em medidas efetivas, preferindo explorar a crise para fins políticos, o que significa que ela exige uma resposta a essa altura.

Criticar os excessos do governo é necessário, sem dúvida, mas não basta. Tentar melhorar a versão Obama de dissuasão é inútil. Os congressistas democratas têm de propor uma solução legislativa de longo prazo, comprometendo-se a lidar com as causas do problema, ao mesmo tempo em que criam um canal legal e eficiente para a migração. Depois disso, terão de defendê-la, mostrando ao país e ao mundo que o norte-americano pode ser humano e prático quando se trata de receber refugiados e desalojados – porque, até agora, o que se vê é o oposto.

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