• Carregando...
 | Pixabay/
| Foto: Pixabay/

Crise é a palavra que, em geral, usamos para descrever a situação atual do Brasil. Porém, as crises não são feitas apenas de aspectos trágicos. Elas também nos trazem oportunidades, nos forçam a repensar os caminhos trilhados e a procurar novos recursos.

Para muitos, a crise atual parece descrever a tragédia das nossas expectativas de um bem-estar social que alcance um número cada vez maior de pessoas. Mas, na verdade, o que ela representa mesmo é uma bela oportunidade de repensarmos nossas ideias e expectativas.

É difícil precisar todos os elementos que compõe o tal bem-estar. Porém, duas coisas parecem certas: primeiro, que ele não se resume às condições materiais (recursos financeiros, moradia, alimentação, ausência de enfermidades etc.); e, segundo, que possui uma dimensão relacional (nosso bem-estar depende da qualidade das relações que estabelecemos com nós mesmos, com os outros e com o mundo).

As últimas décadas no Brasil foram marcadas pela ênfase naquilo que podemos chamar de politics of delivery (política da entrega), que promete oferecer aos cidadãos novos benefícios que irão ampliar a sua qualidade de vida.

Essa política comporta sérios problemas, que vão além da limitação dos recursos e dos frequentes desvios a que eles são submetidos antes de chegarem aos destinatários. Em geral, ela não considera e, frequentemente, prejudica todo um conjunto de recursos fundamentais para o bem-estar, que se encontram potencialmente nas pessoas e nas relações que elas estabelecem.

Leia também: Depois da crise

Pensemos nas políticas públicas de habitação. Em geral elas funcionam assim: cadastram aqueles que não dispõem de uma moradia digna, contratam empresas para construir conjuntos habitacionais e depois distribuem as unidades entre os cadastrados. Porém, ao prover um incremento nas condições materiais de moradia, a política, no seu estilo delivery, não considerou e, por isso, enfraqueceu, potenciais recursos como, por exemplo, (1) a capacidade da família de se envolver na solução do problema; e (2) as redes de solidariedade local (vizinhança) nas quais estavam envolvidas estas famílias.

Por isso, a crise atual não deve nos levar somente a lamentar os limites impostos à politics of delivery, pode ser uma boa oportunidade para descobrirmos uma outra categoria de bens fundamentais para o nosso bem-estar, mas que não são nem privados (aqueles aos quais se deve pagar um preço e estar sujeito à disponibilidade), nem públicos (de uso comum). O sociólogo italiano Pierpaolo Donati no livro “Sociologia relazionale: come cambia la società” (La Scuola, 2013) os chamou de bens relacionais, uma vez que: consistem em relações sociais; são produzidos e fruídos juntos por aqueles que participam dessas relações; e o bem que comporta é um efeito emergente (excede as contribuições dos sujeitos envolvidos), o qual reverte em benefício seja dos participantes, seja de quem compartilha de fora os reflexos. Não são propriedade de um indivíduo, nem da coletividade, entendida de forma genérica. Não emergem entre sujeitos anônimos, ou quando só existem motivações instrumentais no envolvimento com o outro.

Pensemos na família. As relações entre os cônjuges, entre pais filhos, entre irmãos, são uma potencial fonte de bens relacionais, uma vez que o bem produzido nestas relações vai além da soma dos bens que cada indivíduo carrega. Os primeiros a se beneficiarem desses bens são aqueles que os produzem enquanto se relacionam. Mas eles também refletem em pessoas que estão de fora. Por exemplo, um adolescente que experimenta relações saudáveis na família faz refletir estes bens relacionais também na escola. O mesmo vale para um pai de família.

Mas podemos pensar também nas associações, onde as pessoas se organizam e trabalham em prol de uma finalidade comum, ou nas obras sociais, criadas para responder alguma urgência daqueles mais necessitados. Também aí se produz bens relacionais, na medida em que se reconhece a identidade pessoal e social dos participantes. Parte-se de uma motivação não instrumental e a conduta se inspira na regra da reciprocidade.

Em meio à crise que vivemos um bom dever de casa para todos que se preocupam realmente com o bem-estar seria pensar no que podemos fazer para reconhecer e promover essas realidades sociais (famílias, associações, obras sociais) nas quais são produzidos os bens relacionais.

Assim, poderíamos passar da politics of delivery, para a politics of commitment (política do compromisso, da responsabilidade), que empenha todos as partes interessadas e os recursos existentes em vista de uma sociedade com mais bem-estar.

Marcelo Couto Dias é professor da Universidade Católica de Salvador.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]