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Os brasileiros também precisam recordar as vítimas do Holocausto

equiparar o comunismo
Itens expostos no Museu do Holocausto, de Curitiba, ensinam sobre a perseguição sistemática aos judeus na Alemanha nazista (Foto: Leticia Akemi/Gazeta do Povo)

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A data de 16 de abril de 2025 marca a comemoração pela primeira vez no Brasil do “Dia Nacional da Lembrança do Holocausto”, que foi instituída pela Lei 14.938, de 29 de julho de 2024, para não nos deixar esquecer das milhões de vidas de judeus e de outras minorias ceifadas pela barbárie nazista. O dia também foi adotado para provocar reflexões sobre as lições aprendidas com a Segunda Guerra Mundial e homenageia o diplomata brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas, falecido em Paris aos 78 anos em 16 de abril de 1954.

Souza Dantas progrediu na carreira diplomática e em 1922 foi nomeado embaixador do Brasil na França, permanecendo no cargo até 1943. A embaixada em Paris era um posto de grande relevância naquela década, pois a cidade era considerada a ‘Meca das Artes” e do refinamento, com milhares de estrangeiros, dentre os quais muitos brasileiros, que lá estavam para aprimorar seus estudos nas universidades e ateliês de franceses famosos. Dantas, muito conhecido e estimado pelos franceses e brasileiros, estava sempre atento aos fatos sociais, políticos e informava os acontecimentos ao governo brasileiro, já prevendo o que viria pela frente.

Que no dia 16 de abril, possamos honrar também os brasileiros que foram aprisionados em guetos, campos de trânsito, concentração e de extermínio, desclassificados por falta de reconhecimento da cidadania brasileira ou pelo reconhecimento de ser judeu

Quando em 1940 a França assinou o armistício com a Alemanha nazista, foi criada no Sul, na cidade de Vichy – a então chamada Zona Livre – um governo colaboracionista liderado pelo marechal Pétain. Dantas também se deslocou com o corpo diplomático brasileiro para lá e, nesse período, já emitia vistos para judeus e minorias perseguidas pelos nazistas. Esses vistos – que podem chegar a mil – foram considerados “irregulares”, pois o embaixador desafiou a proibição do governo Vargas de conceder vistos a semitas, salvando as vidas de quem, desesperadamente, buscava um país para refúgio, e, em razão disso,  precisou responder a um processo administrativo no Brasil.

Em 1941, quando já estava em Vichy, Dantas deveria se aposentar, porém, devido à guerra, sua permanência foi prorrogada, fato esse que possibilitou mostrar o seu caráter humanitário. Em novembro de 1942, os nazistas invadiram a sede da  embaixada brasileira em Vichy em busca de arquivos e ele, ao enfrentar os invasores, foi ameaçado com uma arma apontada para a sua cabeça.

O diplomata Álvaro da Costa Franco, no seu livro Em Meio à Crise: Souza Dantas e a França Ocupada(2008), informa que Souza Dantas fora homenageado em 29 de dezembro de 1942 por colegas latino-americanos pelos 20 anos de atuação no posto na França. Na ocasião, Pétain enviou-lhe um presente, porém, pouco tempo depois, em 23 de janeiro de 1943, decidiu internar o embaixador e a equipe diplomática em Mont Doré les Bains. Em fevereiro daquele ano, foram transferidos para Bad Godesberg, Alemanha, para a troca por alemães que se encontravam no Brasil. Dantas deixou a Alemanha em 28 março de 1944, regressando ao Brasil, via Lisboa, após um ano e 42 dias de internamento. Foi o período de internamento mais longo imposto aos agentes diplomáticos brasileiros e ele negou-se a aceitar um tratamento diferenciado de seus colegas.

Por sua atuação em salvar vidas, as ações de Souza Dantas chegaram a ser divulgadas pela imprensa brasileira, porém, sob o controle do governo Vargas, sua atuação foi ocultada da opinião pública. Em 16 abril de 1954, com a saúde debilitada e solitário, Souza Dantas morreu em Paris num quarto simples do Grand Hôtel, na Praça da Ópera. No seu inventário havia poucos bens e seu corpo foi trasladado para o Brasil. A vida e as ações de Souza Dantas começaram a ser reveladas para os brasileiros por meio das publicações de historiadores de renome como Maria Luiza Tucci Carneiro, O Antissemitismo na Era Vargas (1988) e Cidadão do Mundo (2010), e Fábio Koifman, Quixote nas trevas (2002).

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O Holocausto é o genocídio mais documentado da história mundial, mesmo assim, há vários fatos e registros desconhecidos e que, graças a historiadores e pesquisadores do tema, ainda estão sendo revelados. Um desses temas diz respeito a ações do embaixador de Souza Dantas visando a proteção dos brasileiros que viviam na França - judeus e não judeus -, de brasileiros com sobrenome germânico, que atravessaram a fronteira rumo ao Brasil, e membros brasileiros da Brigada Internacional que lutavam na guerra civil espanhola.

Pela documentação analisada no Arquivo Histórico do Itamaraty/RJ é possível afirmar que o Embaixador esteve sempre atento às imposições das leis francesas a brasileiros, a judeus e a brasileiros judeus, e que inúmeras vezes protestou de forma enérgica junto ao governo de Vichy. Fez o possível para libertar brasileiros que foram levados a campos de trânsito, foi pessoalmente a encontros com as autoridades francesas em busca de soluções imediatas, tentou evitar a arianização – transferência de empresas pertencentes a judeus brasileiros para proprietários "arianos". É grande a possibilidade de que Souza Dantas tenha atuado em conjunto com o cônsul português em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes, na concessão de vistos, possibilitando que brasileiros chegassem até Portugal e assim se salvassem.

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Entre dezenas de diplomatas brasileiros em missão na Europa apenas duas pessoas ajudaram a salvar judeus mediante a liberação de vistos. “Quem salva uma vida salva o mundo inteiro” é a frase dignificante que consta do Talmud (compilação das leis e tradições judaicas) para expressar a valorização da vida. O embaixador Luiz Martins de Souza Dantas e a paranaense Aracy Moëbius de Carvalho que, apesar de não ser diplomata, atuava como responsável pelo setor de concessão de vistos do Consulado do Brasil em Hamburgo, têm seus nomes inscritos como “Justos entre as Nações” no Yad Vashem, o Memorial oficial de Israel que lembra as vítimas judaicas do Holocausto em Jerusalém.

Há quem pergunte: como assim brasileiros vítimas do Holocausto? A resposta é sim, havia centenas de brasileiros na Europa naquele período, no entanto, é impossível determinar quantos viviam ou estavam em trânsito nos países ocupados pela Alemanha, bem como o total de vítimas brasileiras, mas o maior número estava na Alemanha e na França. A menção aos brasileiros causa um certo estranhamento porque a visão a respeito do Holocausto remete à Europa e isso torna as vítimas brasileiras anônimas na História. Nem todos os brasileiros eram judeus e mesmo assim foram presos e vários deportados em razão de ideologias ou crenças políticas diferentes daquelas propagadas pelos nazistas.

Que no dia 16 de abril, possamos honrar também os brasileiros que foram aprisionados em guetos, campos de trânsito, concentração e de extermínio, desclassificados por falta de reconhecimento da cidadania brasileira ou pelo reconhecimento de ser judeu.

Blima Rajzla Lorber é filha de sobreviventes do Holocausto, jornalista, mestre em Cultura Judaica, pesquisadora do Arqshoah/LEER/USP, autora do livro “Brasileiros no Holocausto e na Resistência ao Nazifascismo 1939-1945” e coautora de “As 14 Vidas de David: o menino que tinha nome de rei”.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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