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Costuma-se dizer que o cidadão acusado da prática de crimes goza de um número de garantias legais muito maior do que aquele que se defende em ação de improbidade, de indenização ou reclamatória trabalhista, por exemplo. Isso sempre foi verdade na maioria dos casos. Mas, de alguns anos para cá, não é mais.

A presunção de inocência (ninguém será tratado como culpado até que haja sentença condenatória irrecorrível), a responsabilidade criminal pessoal (não responde pelo ato quem não o causou diretamente), a ampla defesa (deve ser aceito todo meio de prova possível em favor do réu), a intervenção mínima (a lei não poderá considerar crimes condutas que não lesionem seriamente os valores da sociedade), a igualdade entre as partes (possibilidades probatórias iguais a ambos os lados da controvérsia), a reconstrução da verdade a qualquer custo, a obrigação da acusação de provar tudo o que alega para além da dúvida e o apego às fórmulas científicas que somente explicam o crime com base em atos de pessoas físicas são alguns dos princípios do direito penal e processual penal clássico ou tradicional.

Não são apenas preceitos jurídicos, mas conquistas históricas caras à humanidade. Eles compartilham entre si não só a elevada importância social, mas também a idade: foram cunhados em um tempo distante, anterior ao dos indivíduos que hoje os estudam.

A partir da década de 1980, no Brasil, um novo tipo de delitos (white collar crimes ou crimes econômicos) fez surgir leis correspondentes. Trata-se da proteção, pelo direito penal, não mais de interesses pessoais (vida, integridade física, liberdade, patrimônio etc.) somente, mas dos complexos interesses coletivos e difusos, como os dos investidores no mercado de ações, do governo na regulação do câmbio e na emissão de moeda, da coletividade na preservação do ambiente e na arrecadação de tributos, dos consumidores em relação à privacidade em serviços de telefonia móvel e internet, entre outros. Logo, os crimes de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, invasão de dispositivo informático alheio, gestão fraudulenta de instituição financeira são diferentes porque pertencem a esta época.

Como não se devem abandonar as garantias, o que se pode discutir em profundidade talvez sejam os limites do próprio direito penal: o que é um crime hoje?

As leis que criminalizam estas condutas frequentemente contêm mecanismos inovadores de investigação e repressão, como a ação controlada (possibilidade de que agentes policiais acompanhem sigilosamente o desenvolvimento de um crime em tese, adiando o flagrante para o momento mais oportuno), a interceptação telefônica e de dados eletrônicos (cujo prazo de duração, embora limitado em lei, pode ampliar-se), a delação premiada (revigorada como colaboração premiada), a ação de agente infiltrado (que se vê em filmes de espionagem), a quebra judicial de sigilo bancário, fiscal e financeiro, a possibilidade de responsabilização criminal de pessoas jurídicas (já que crimes econômicos comumente envolvem empresas).

Nesse sentido, tem havido grande embate, nos cenários acadêmico e forense, entre os princípios clássicos e os meios de tratamento da criminalidade contemporânea. É possível questionar como fica a presunção de inocência na investigação que se inicia mediante interceptação telefônica ou prisão preventiva. Existe o interesse na verdade dos fatos quando, antes de o processo começar (e serem produzidas e discutidas as provas), é aceita a colaboração premiada como versão legítima? A intervenção mínima é respeitada quando há dezenas de tipos de crimes cuja existência em lei a maioria das pessoas desconhece? Aplicar penas criminais a pessoas jurídicas não contraria a teoria de que somente é crime a ação proibida em lei praticada por ser humano consciente de que desrespeita a lei?

As tentativas de compatibilização desses princípios com os métodos e as soluções legais de hoje não têm obtido sucesso. A rigor, parecem incompatíveis. Seria este, então, o momento de se tomar o lado da defesa das garantias tradicionais ou da concessão ao intervencionismo criminal? Em termos práticos, esse é um problema ligado à eficiência da Justiça criminal. Há quem diga que, quanto menos garantias para o réu, mais rápidos são os resultados dos casos e mais satisfeita a sociedade. Ainda que, no longo prazo, sejam incertas as consequências sociais dessa nova “justiça processual” de alto rendimento.

Convém a todos os interessados, inclusive à academia, debater não mais a compatibilidade entre os princípios de ontem e as leis criminais de hoje, mas o funcionamento desses novos métodos de identificação e punição, que, afinal, já são a realidade. Não se podem negar os benefícios práticos que a colaboração premiada é capaz de produzir, por exemplo, no que diz respeito ao sentimento popular de justiça e à reparação de prejuízos patrimoniais; ou a alta qualidade probatória que uma gravação de conversa telefônica representa. Os séculos de produção literária sobre os princípios e limites não impediram a sociedade de produzir as leis que aplica todos os dias.

No entanto, como não se devem abandonar as garantias (base constitucional do Estado), o que se pode discutir em profundidade talvez sejam os limites do próprio direito penal: o que é um crime hoje? Ainda existe um conceito geral? Qual o seu objeto, afinal? Pode-se argumentar que sonegação tributária, delitos contra a honra (injúria, calúnia e difamação), furto, estelionato, enfim, crimes praticados sem violência deveriam ser tratados como ilícitos civis, sujeitando o autor a pesadas penas patrimoniais ou a outras sanções que já são aplicadas a pessoas jurídicas (cassação de licenças, proibição de contratar com o poder público, suspensão de atividades etc.), pois a prisão não tem resolvido o problema. Nessas (e outras) hipóteses, quem sabe, poderá caber ao direito administrativo assumir a tarefa repressora.

Sejam quais forem os limites desse direito penal moderno ou do futuro, se for para assumir novas áreas de atuação – como a punição das pessoas jurídicas (com sanções patrimoniais e restrições a direitos) ou a prevenção (compliance) –, ele talvez deva, antes, abandonar outras. Quanto às garantias, não se vê prejuízo em serem tanto mais frequentes e exigíveis quanto mais graves foram as penas aplicadas.

Gustavo Scandelari, advogado, é mestre em Direito e professor de Direito Penal.
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