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Dentre os temas de alta complexidade no processo penal, poucos são tão desafiadores quanto a apuração de crimes de natureza sexual. Isso porque são delitos que, por natureza, costumam ocorrer em ambientes privados, na ausência de testemunhas e, muitas vezes, sem vestígios físicos perceptíveis. Essas circunstâncias impõem dificuldades concretas para a produção de provas materiais, tornando o depoimento da vítima um dos principais elementos disponíveis para a persecução penal.
A palavra da vítima, então, assume nesses casos forte valor probante. Os tribunais reconhecem que, diante da escassez de provas objetivas, um relato firme, coerente e compatível com os demais elementos colhidos nos autos pode ser decisivo para a formação do convencimento do julgador. Não são raras as decisões em que, destacando a consistência do relato da vítima, o Judiciário valida sua palavra como elemento central para a condenação.
Entretanto, isso não significa que o testemunho deve ser tratado como prova absoluta ou automática de veracidade de crimes de natureza sexual. Essa distinção é fundamental para que se faça valer os princípios consagrados na Constituição Federal. A análise do depoimento da vítima deve ser sempre acompanhada de um juízo crítico, atento a eventuais contradições, imprecisões ou à existência de elementos que possam indicar motivação espúria na formulação da denúncia. A própria jurisprudência dos tribunais superiores tem reiterado que, embora relevante, o relato da vítima não pode ser analisado isoladamente, devendo ser confrontado com o conjunto probatório e inserido no devido contexto dos autos.
Vai nesse sentido um acórdão publicado pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1.594.445 - SP (2019/0294804-8): “A condenação do envolvido não ocorreu apenas do depoimento da mãe da vítima e sim de todo o arcabouço fático-probatório colhido nos autos”.
Diante da enorme responsabilidade que recai sobre o julgador, impõe-se sempre o exame cauteloso, rigoroso e técnico das provas, de modo a preservar a confiança social na justiça criminal
A jurisprudência deixa claro que, embora seja possível a condenação com base no relato da vítima de um crime sexual, isso exige um conjunto mínimo de coerência probatória, ainda que indireta. A ausência de qualquer outro suporte recomenda prudência redobrada, sob pena de afronta à presunção de inocência.
Diante da complexidade da questão é preciso enfrentar um equívoco recorrente no debate público e, infelizmente, até mesmo em alguns círculos jurídicos: a afirmação categórica de que “a palavra da vítima basta” para a condenação criminal. A máxima, embora bem-intencionada ao buscar uma resposta para a vítima de crimes que geram comoção, não corresponde à sistemática do processo penal democrático. A Constituição Federal, em seu artigo 5º, assegura que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Esse princípio impõe que o ônus da prova recaia integralmente sobre a acusação, jamais se transferindo ao acusado a obrigação de provar sua inocência.
Quando se afirma, de forma apressada, que a palavra da vítima basta, corre-se o risco grave de, na prática, inverter-se o ônus da prova. Em um sistema penal que respeita garantias fundamentais, não se condena alguém apenas porque a acusação afirma que o fato ocorreu; é necessário demonstrar a veracidade dessas afirmações de forma robusta e objetiva. O perigo dessa inversão fica ainda mais evidente nos tempos atuais, em que processos de forte apelo midiático ganham grande repercussão social, gerando enorme pressão sobre o sistema de justiça e sobre os próprios julgadores.
A necessária e legítima preocupação social com a proteção das vítimas de crimes sexuais não pode afastar o dever de rigor técnico no exame das provas. Cada julgamento exige um exame individualizado, com atenção tanto à escuta sensível da vítima quanto à garantia de defesa plena ao acusado. É justamente o equilíbrio que diferencia um sistema de justiça democrático de práticas inquisitoriais.
O processo penal não é o espaço da emoção, mas da razão jurídica. Os sentimentos de indignação ou compaixão, por mais compreensíveis que sejam diante da gravidade de determinados delitos, não podem contaminar a análise isenta e técnica da prova. A função do Judiciário não é acolher emoções, mas aplicar o Direito com base em provas sólidas e em respeito às garantias constitucionais.
Valorizar a palavra da vítima de um crime sexual significa reconhecê-la como um importante meio de prova, especialmente diante das dificuldades naturais de investigação nos crimes sexuais. Contudo, a busca pela proteção da vítima não pode resultar na violação dos direitos fundamentais do acusado. Ambos merecem respeito — a vítima, pelo acolhimento e investigação séria de suas alegações; o acusado, pelo seu direito inalienável à ampla defesa e ao devido processo legal.
Portanto, diante da enorme responsabilidade que recai sobre o julgador, impõe-se sempre o exame cauteloso, rigoroso e técnico das provas, de modo a preservar a confiança social na justiça criminal. Somente assim será possível conjugar, de forma harmoniosa, a devida proteção à vítima e o respeito à presunção de inocência — pilares que devem coexistir no processo penal democrático.
Caroline Rangel é advogada criminalista com pós-graduação em Ciências Penais.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



