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A aprovação da PEC 66/23 pelo Congresso Nacional – norma que sequer vai à sanção do presidente da República – representa mais um capítulo triste da história recente do país. Sob o pretexto de abrir espaço fiscal para novos gastos governamentais, senadores e deputados, com raríssimas exceções, referendaram o que, na prática, é a legalização de um calote. Os precatórios – dívidas já transitadas em julgado e reconhecidas pela Justiça – mais uma vez deixam de ser tratados como obrigação constitucional e passam a ser manobrados como variável contábil de conveniência política.
A proposta permite, na prática, a rolagem indefinida dos precatórios estaduais e municipais, retira os precatórios federais da regra fiscal (já um queijo suíço esburacado, cheio de exceções) e reduz a correção monetária devida, trazendo perdas concretas a quem esperou anos ou até décadas para ver reconhecido seu direito. O resultado será a multiplicação da fila de pagamentos, a corrosão do valor devido e a perpetuação de uma dívida pública impagável.
O mais grave é que não se observa, no Congresso Nacional, qualquer voz realmente disposta a defender os credores. Nem mesmo a autoproclamada “bancada conservadora” ousou se opor de maneira firme ao atropelo. Pior: votaram pela aprovação! Conservadorismo e liberalismo que se calam diante da quebra da segurança jurídica e da violação da coisa julgada não merecem este nome. A omissão é ainda mais escandalosa quando se percebe que muitos desses credores são pequenos empresários, aposentados, pensionistas, pessoas que tiveram imóveis desapropriados e cidadãos que já venceram o Estado na Justiça (em questões tributárias, de responsabilidade civil etc.) e agora assistem, impotentes, à postergação indefinida de seus direitos. Ganham, mas não levam! Onde está o pacta sunt servanda?
O Brasil já acumula uma série de medidas constitucionais que adiaram o pagamento dos precatórios. Desde a década de 2000, foram pelo menos cinco grandes emendas constitucionais com esse objetivo: a) a EC 30/2000, que parcelou os débitos em até 10 anos; b) a EC 62/2009, que criou o famigerado “regime especial” de pagamento em 15 anos (nota histórica: Cuba chama de “período especial” a crise que se seguiu à queda da União Soviética, sua madrinha – a langue de bois francesa vai bem, obrigado!); c) a EC 94/2016, que permitiu o uso de depósitos judiciais para postergar a quitação; d) a EC 99/2017, que estendeu prazos até 2024 (prazo já vencido…); e) e a EC 113/2021, já no governo Bolsonaro (quem diria…), que reduziu o montante anual destinado e empurrou dívidas para o futuro.
A confiança na Justiça se esvai quando decisões transitadas em julgado são transformadas em letra morta. E a própria democracia se fragiliza quando a Constituição se torna instrumento de postergação daquilo que deveria ser certo e líquido
Agora, a PEC 66/23 aprofunda ainda mais essa lógica de postergação eterna. Em outras palavras: por mais de duas décadas, sucessivos governos e congressos vêm reeditando a mesma prática de “empurrar com a barriga”, sem jamais resolver o problema. O dinheiro devido aos credores do Estado vira, literalmente, o pote de ouro no fim do arco-íris: um Eldorado, uma Shangri-lá inalcançável.
As consequências desse ciclo de calotes são devastadoras. Empresas fecham as portas à espera de pagamentos que nunca chegam. Pessoas físicas envelhecem ou morrem antes de receber o que lhes é devido.
Tenho vários processos em que os autores originais faleceram, e a demanda se transformou numa barafunda de herdeiros também já falecidos – processos habitados por fantasmas que morreram sem receber o que lhes era devido. Em alguns casos, é preciso desenhar uma árvore genealógica para identificar quem ainda terá direito a algo, o que põe à prova o conhecimento das regras de sucessão do Código Civil (quando determinada pessoa faleceu? Antes ou depois de seu ascendente?).
A confiança na Justiça se esvai quando decisões transitadas em julgado são transformadas em letra morta. E a própria democracia se fragiliza quando a Constituição se torna instrumento de postergação daquilo que deveria ser certo e líquido. Apenas os credores internacionais parecem merecer consideração, para que possamos conquistar as cobiçadas notas das agências de risco. Elas deveriam considerar também o calote dos precatórios como risco fiscal. Alô, FMI! Alô, Fórum Econômico Mundial!
Ao aprovar a PEC 66/23, o Congresso mais uma vez sacrificou os cidadãos e premiou a irresponsabilidade fiscal de Estados e Municípios, deixando o recado de que o passado não será cobrado, de que se pode contrair mais dívidas e erguer mais obras.
Ao contrário do que possa parecer, a PEC 66/23 não ajuda a sanar as contas públicas. Apenas alimenta o vício de entes perdulários por recursos públicos (isto é, dinheiro dos outros). As “recompensas” da PEC 66/23 são apenas mais uma dose irresponsável para drogaditos que já deveriam estar em tratamento, em regime de internação compulsória.
O dia 2 de setembro de 2025 foi sangrento no chão do Senado Federal. O respeito aos contratos (e precatórios são, no fundo, isso) foi esfaqueado e só pôde murmurar aos senadores “conservadores” que traíram os credores: “Et tu, Seif?” (senador do PL-SC). Ou “Tu quoque, Astronauta, fili mi?” (senador do PL-SP). Afinal, o pagamento da dívida de precatórios não gera placas de inauguração, não permite obras vistosas ou emendas PIX com tudo o que as acompanha. Ele sequer rende elogios na imprensa.
É hora de perguntar: até quando o país conviverá com um calote permanente travestido de emenda constitucional?
Luiz Augusto Módolo de Paula é advogado, bacharel, mestre e doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP, jornalista e membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo. Escritor, autor de “Genocídio e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda” (Appris, 2014), “Resolução de Conflitos em Direito Internacional Público e a Questão Iugoslava” (Arraes, 2017), “A Saga de Theodore Roosevelt” (Editora Lisbon International Press, 2020), “O Jugo da Histeria no Brasil Ocupado” (2021) e de “Teddy Roosevelt para Crianças” (2022) – os dois últimos editados pela Arcádia Educação e Comércio Ltda e escritos em parceria com Lílian Cristina Schreiner-Módolo. Instagram: @luizaugustomodolo. X(Twitter): @LAModolo.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



