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Em seu excelente livro, O poder do pensamento matemático, Jordan Ellenberg nos conta que os aviões dos aliados na II Guerra Mundial precisavam de reforços na blindagem, que deveriam ser de precisão cirúrgica pois deveriam mantê-los o mais leve possível para não reduzirem sua agilidade em combate. Cabia ao matemático Abraham Wald definir como se daria a blindagem, embasado nos seguintes dados acerca dos furos de bala nos aviões que retornavam das batalhas: motor – 1,11 balas por 30,5 cm2; fuselagem – 1,73; sistema de combustível – 1,55; resto do avião – 1,80. Você, leitor, diria que a blindagem deveria se dar em que parte das aeronaves?

No último 18 de maio, os caminhoneiros autônomos alertaram que parariam suas atividades a partir do dia 21. Dentre os motivos alegados, os principais eram os custos do diesel e dos pedágios nas rodovias. O mais forte argumento para realizar a paralisação era que, com ela, o governo reduziria a carga tributária sobre o diesel e seu preço cairia (também no caso dos pedágios). Essa é uma pauta focada no custo empresarial da atividade. Transportadores autônomos se configuram como microempresários, portanto, suas reivindicações coincidem com preocupações empresariais e não com as de trabalhadores, como melhores salários e redução de jornada, por exemplo. Um dado fundamental da questão é que 60% da frota de transportadores rodoviários de carga é de empresas, 39% de autônomos e 1% de cooperativas (dados referentes ao ano de 2016, publicados no Anuá́rio Estatístico de Transportes 2010 - 2016 da Agência Nacional de Transportes Terrestres). Tendo em vista que a totalidade da frota paralisou no movimento, decorrem duas possibilidades lógicas: ou o movimento foi amplamente influenciado por interesses diretamente empresariais ou os autônomos impediram que a frota empresarial circulasse. É imprescindível perceber que, com tal pauta de reivindicações, os trabalhadores, funcionários das empresas transportadoras, não teriam motivo nenhum para se juntarem ao movimento, visto que os possíveis ganhos seriam de seus empregadores e não seus. Resta claro, óbvio ululante, que esse foi um movimento de “barganha empresarial”.

A população como um todo vai pagar a conta, seja por meio de menor acesso a serviços básicos, seja pagando os custos da reoneração tributária

O governo cedeu, baixou a carga tributária sobre o diesel, mas se ele não fabrica riquezas, não é remunerado no mercado pela comercialização de produtos e serviços, e a impressão de moeda acima do crescimento econômico causa inflação, portanto só pode cobrir o custo dessa isenção tributária sobre o diesel por meio da elevação da arrecadação via aumento de algum(ns) outro(s) tributo(s) ou pela redução de custos com alguma de suas despesas. O governo adotou os dois caminhos, cortou despesas e reonerou tributos em outras áreas. Isso significa que a população como um todo vai pagar a conta, seja por meio de menor acesso a serviços básicos, seja pagando os custos da reoneração tributária nos preços dos produtos e serviços atingidos por essa medida. Ganha uma ínfima parcela da população (todos empresários, autônomos ou pessoas jurídicas), pagam a conta todos os brasileiros. Não bastasse isso, o movimento também fez com que o governo, sócio majoritário da Petrobras, cometesse ingerência na política de preços da empresa, impedindo sua livre definição com base nos custos do petróleo no mercado internacional (influência direta sobre seus custos). Modelo adotado no governo Dilma, o qual quase levou a empresa à bancarrota.

Em sua capa na edição de 24 de maio, certo jornal publicou: “Um país refém dos caminhoneiros”. A imagem dessa capa circulou em redes sociais com o seguinte comentário: “Estamos reféns de um governo golpista e de uma mídia manipuladora”. Os autores desse comentário tentam transmitir a ideia de que os que percebem que ficamos reféns dos caminhoneiros somos mentes coitadas manipuladas pela mídia. Dizem que foi manipulação dos meios de comunicação demonstrar que a paralização estava comprometendo o atendimento nos hospitais, por exemplo, uma vez que o movimento deixava caminhões com oxigênio hospitalar circularem. Imaginavam que esses caminhões eram imunes à falta generalizada de combustíveis, que não precisavam abastecer seus tanques? Ou que a falta de alimentos frescos não fazia diferença para a preparação das refeições de pessoas internadas? Ou que não houve nenhum impacto na locomoção dos profissionais de saúde? Talvez queiram defender também que estarmos extremamente limitados em nosso poder de locomoção não nos torna reféns dos que estão nos causando essa limitação. Ora, se dependemos exclusivamente dos transportes rodoviários de cargas para termos acesso aos mais diversos itens básicos e para exercer nosso poder de locomoção, e esses transportadores decidem parar completamente (impedindo de circular, inclusive, os que não querem parar) para fazer exigências (por mais justas que possam ser), o que somos deles se não reféns? Uma afirmação contrária a essa só me faz lembrar a Síndrome de Estocolmo.

Leia também: Um país condenado ao atraso (artigo de Cláudio Slaviero, publicado em 17 de junho de 2018)

Opinião da Gazeta: O tabelamento do frete (editorial de 17 de junho de 2018)

O que os 87% da população que apoiaram o movimento pensaram que teriam de benefícios? Os argumentos mais recorrentes entre esses foram: a) os combustíveis estão muito caros, o governo tem de baixá-los; b) os políticos vão ver que a coisa é séria e vão parar com tanta corrupção; c) a Petrobras não pode continuar com essa política de preços (c). Pontos já muito tratados recentemente, apenas coloco o seguinte: (a) para fazer isso é necessário que o governo cubra as perdas da Petrobras e esse custo adicional só pode sair da redução de serviços e investimentos públicos ou da elevação de impostos; (b) essa não foi a primeira vez que transportadores rodoviários pararam o país, nem no Brasil nem em outros países, e os níveis de corrupção não diminuíram por isso; (c) a Petrobras só pode segurar preços sofrendo perdas econômicas, o que a levaria, mais ou cedo ou mais tarde, a uma situação em que ou o governo passaria a fazer aportes a ela ou teria de vender grande parcela de sua participação acionária para lhe permitir novas injeções de capital.

Retomemos o caso dos aviões dos aliados. Os 87% dos brasileiros que apoiaram o movimento tomaram decisão similar a de reforçar a blindagem ou no “resto do avião” ou na “fuselagem” (maior número de furos de bala). Ocorre que Wald analisou inteligentemente os dados e identificou que se deveria reforçar não onde havia mais furos de bala, mas onde não havia. Percebeu que o problema real estava na parte que, ao ser atingida, levava à queda dos aviões. Não fazia sentido, portanto, blindar as áreas que tinham mais furos nos aviões que voltavam! A falha analítica aqui é a típica limitação de quem não consegue enxergar o problema de maneira ampla. No caso do Brasil e seus “87%”, a área com mais furos de bala é o alto preço na bomba dos combustíveis.

Marcos Pena Júnior é economista.
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