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Opinião 1

Pessoa é pessoa

Comece a ler o livro Fernando Pessoa, uma quase autobiografia pela frase: "Assim se contou, com suas próprias palavras, a vida gloriosa de meu amigo Fernando Pessoa". Porque ela traz um resumo das características inéditas deste livro escrito por José Paulo Cavalcanti Filho, quase integralmente com as palavras do próprio biografado. E pelo fato de ser um livro de amor, que como dizia Pessoa, são todas ridículas, e grandiosas eu acrescentaria. Afinal, para o desavisado parece sem sentido concluir falando da amizade entre duas pessoas que não se conheceram, e grandiosa a percepção de que eles sempre se conheceram e se amaram.

Depois leia o que vem acima dessa frase: um texto com quatro parágrafos, pelos quais José Paulo transcreve Pessoa como se este se despedisse de si próprio. Ao ler, imagino o processo de elaboração do autor desta "quase uma autobiografia" para encontrar este texto correto, e colocá-lo no lugar certo. Todo o livro mostra uma pesquisa rigorosa, com um método e um roteiro cuidadoso.

As últimas páginas são concisas, como no Aleph de Borges, de todo o estilo da obra, no qual o autor da biografia parece pedir desculpas por intrometer-se ao escrever sobre a fala do biografado que conversa conosco 77 anos depois de sua morte. Passando a sensação de que não morreu, que José Paulo passa, mesmo sem precisar dizer isto em nenhum momento, apenas deixando que o poeta continue falando. Isso é o que o livro faz, deixa o poeta falar, e o autor consegue o trabalho hercúleo de localizar como cada fala no passado se aplica a cada momento ao longo da vida interminada do biografado.

Depois da última página, leia os capítulos anteriores, Desalento e Fim, nos quais o autor dá sua contribuição passando o máximo de emoção na descrição da despedida final de quem não morreu. Jose Paulo mostra sua grandeza de escritor ao escrever com sua pluma e ao escrever com a pluma do seu amigo biografado.

A partir daí, vá para o início e leia o livro do princípio ao fim. Veja a vida de um poeta que se inicia com a possibilidade de aventuras, com sua viagem inicial acompanhando mãe e padrasto para viver em terras tão distantes, na África do Sul. Mas que se transforma em uma vida cuja única aventura foi unir palavras, compor pensamentos que transmitissem sentimentos, quase sempre livres, surgidos do nada, vindos das distantes "terras" de outra dimensão que ele tentou entender pela iniciação em crenças místicas e iniciáticas, mas cuja metafísica se confunde com a própria vida, misturando o que chamamos de real e o que também é real sob o nome de criação literária, como são reais todos os seus 127 outros heterônimos.

Décadas atrás, quando descobri Fernando Pessoa pensei que o seu sobrenome fosse um heterônimo também, significando que ele não era Pessoa, era pessoa. Afinal, o nome genérico de pessoa é tão oportuno para um poeta do seu tipo, que a realidade nos surpreende ao fazê-lo nascer chamado Pessoa. Ao ler a quase autobiografia, tantas décadas depois, descobri por intermédio do seu "heterônimo" José Paulo, que de fato Pessoa era muito mais do que um sobrenome.

Obrigado José Paulo, não apenas pelo prazer que nos dá ao ler o livro; nem pelo que me permitiu conhecer da vida do poeta, nem por mostrar a genialidade de uma biografia escrita com as palavras do biografado; nem pela admiração pelo esforço imenso de suas pesquisas; mas, sobretudo, por me confirmar que Pessoa é pessoa, como eu imaginava que era.

Cristovam Buarque, professor da UnB, é senador pelo PDT-DF.

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