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Do plágio acadêmico à guerra cultural: Putin e a manipulação da verdade

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O ditador da Rússia, Vladimir Putin. (Foto: VLADIMIR SMIRNOV/EFE/EPA/SPUTNIK)

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Quando se fala em Vladimir Putin, a primeira imagem que costuma vir à mente é a posição do atual presidente russo em meio à guerra na Ucrânia, suas estratégias militares e a tensão geopolítica que ele provoca. Mas há um episódio pouco conhecido fora dos círculos acadêmicos que ajuda a desmistificar parte de sua personalidade: a grave suspeita de plágio em sua tese de doutorado.

Antes de entrar no caso específico, vale esclarecer: plágio ocorre quando alguém apresenta como seu o trabalho intelectual de outra pessoa, sem a devida atribuição. Pode ser a cópia literal de trechos de um texto, a apropriação de uma ideia, ou mesmo pequenas mudanças de palavras em um conteúdo originalmente criado por terceiros. No meio acadêmico, o plágio é considerado uma das infrações mais graves, porque compromete a confiança na produção de conhecimento e fere diretamente o princípio de originalidade que sustenta a pesquisa científica. Para a lei brasileira é tanto uma violação de natureza civil, passível de reparação financeira, quanto um crime previsto no código penal.

Nos anos 90, Vladimir Putin apresentou sua tese de doutorado em Economia na Universidade de Mineração de São Petersburgo. Anos mais tarde, em 2006, pesquisadores da Brookings Institution e jornalistas da revista Time revelaram que pelo menos 16 páginas do trabalho eram praticamente idênticas a um manual acadêmico publicado pela Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos. Esse manual, chamado Strategic Planning and Policy, circulava traduzido em bibliotecas russas na época. A semelhança entre os textos foi considerada inequívoca por especialistas.

Em qualquer grande universidade ocidental, um escândalo desse porte poderia resultar em cassação do título acadêmico. Mas na Rússia, a denúncia foi abafada. Não houve sequer investigação formal, não se abriu processo disciplinar, e o episódio foi simplesmente ignorado pelas autoridades acadêmicas.

A manipulação da verdade não nasce nos campos de batalha, mas nos pequenos gestos de quem, cedo ou tarde, percebe que a manipulação da narrativa pode ser mais poderosa que os fatos

Pode parecer exagero ou mera curiosidade vincular uma tese plagiada a uma guerra. Mas há um fio condutor que não pode ser descartado: a forma como Putin lida com a verdade. Na universidade, ele teria se apropriado de conhecimento alheio para construir uma imagem de intelectual respeitável, sem enfrentar as consequências. No governo, usa a mesma lógica ao manipular informações, impor narrativas oficiais e deslegitimar qualquer versão que contrarie seus interesses.

Mais importante do que o plágio em si, o que reverbera há quase vinte anos é o silêncio das instituições. Quando a academia falha em proteger seus padrões éticos, permite que títulos acadêmicos sejam instrumentalizados como símbolos de prestígio, mesmo quando obtidos de forma duvidosa. É a mesma lógica que se vê em sua sanha militar e expansionista: a censura à imprensa, a manipulação da opinião pública e a construção de uma “verdade oficial” que ignora fatos inconvenientes.

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Hoje, na Ucrânia, a disputa não se dá apenas no campo militar, mas também na guerra da informação. Notícias falsas, propagandas estatais e versões distorcidas dos acontecimentos circulam em ritmo acelerado, reforçando o controle de Putin sobre a narrativa interna e tentando influenciar a percepção internacional. Nesse sentido, a tese plagiada de décadas atrás não é apenas um detalhe biográfico. Ela antecipa um padrão: quando a realidade não serve ao poder, ela é reescrita.

Para o público brasileiro, pode parecer curioso ou até irrelevante conhecera aventura de violação acadêmica de Vladimir Putin, mas ele ajuda a compreender como líderes autoritários constroem suas trajetórias: não pela busca da verdade, mas pela habilidade em moldá-la. Plágio, afinal, não é só copiar um texto. É um ataque à confiança que sustenta instituições de ensino, ciência e cultura. Quando praticado por quem ocupa cargos de poder, seus efeitos vão além da sala de aula: sinalizam que normas podem ser violadas sem consequência desde que se tenha força suficiente para impor o silêncio.

Do plágio acadêmico à guerra cultural, a lição é clara: a manipulação da verdade não nasce nos campos de batalha, mas nos pequenos gestos de quem, cedo ou tarde, percebe que a manipulação da narrativa pode ser mais poderosa que os fatos.

Tanderson Danilo Schmitt Morales, advogado, é presidente da Comissão de Direito Autoral da OAB/SP, especialista em Propriedade Intelectual e Gestão Cultural.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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