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Militares do Exército durante cerimônia em 2019
Militares do Exército durante cerimônia em 2019.| Foto: Palácio do Planalto

“A guerra é uma simples continuação da política por outros meios” (Carl von Clausewitz).

Existe um amplo consenso, em países com instituições bem estruturadas, que o direcionamento do preparo e do emprego da sua capacidade militar compete à classe política, representada pelos cidadãos eleitos para exercer funções nos poderes executivo e legislativo. Para este fim, o poder político conta com dois essenciais Instrumentos da Defesa: as forças armadas e um sistema autônomo que cuide da base logística de defesa, como já evidenciado no artigo “A reforma necessária na logística de defesa do Brasil”, publicado recentemente pela Gazeta do Povo.

Colin Gray, reconhecido autor de livros sobre estratégia e planejamento da defesa e larga experiência como consultor de ministérios de defesa de países anglo-saxões, alerta que “o planejamento da defesa conduzido com pouca ou nenhuma referência à política, não pode ter nem propósito nem legitimidade, da mesma forma, conduzido sem substancial atenção à estratégia, não pode fazer nenhum sentido”.

Ora, a Grande Estratégia de um país, que deve condicionar todas as suas estratégias setoriais, como a de defesa e todas as outras umbilicalmente ligadas a ela, tais como as de relações exteriores, segurança, inteligência, industrial e tecnológica, também deriva de opções políticas feitas por representantes do povo.

O problema é que, no Brasil, a classe política não vem exercendo essa sua responsabilidade, deixando a cargo das forças armadas praticamente tudo relacionado à defesa. Ou seja, as decisões acabam sendo tomadas “de baixo para cima”, a partir de uma visão parcial, puramente corporativa e militar e, não, como deveriam ser, a partir de uma visão holística, traduzida em orientações claras e objetivas, emanadas do poder político.

A participação do poder político na defesa não se expressa apenas através dessas orientações de caráter geral, mas, principalmente, pelo efetivo exercício da gestão estratégica da defesa. Esta se faz com decisões tomadas por atores políticos que ocupam posições de alto nível na hierarquia do Estado e envolvem soluções de compromisso (trade-offs) entre orçamento, capacidade operacional de combate e capacidade de logística de defesa.

Em períodos de paz, as restrições orçamentárias exigem grande atenção aos custos de oportunidade, porque as consequências de erros de avaliação, que possam levar a escolhas mal feitas, são gravíssimas. No limite, podem resultar em perda de territórios, soberania, independência, ou no próprio desmembramento do país. Nessas circunstâncias, só o poder político, que representa a população, possui a legitimidade para tomar decisões cruciais, em face dos elevados riscos aos interesses nacionais envolvidos.

É do Executivo, representado pelo Ministro da Defesa, a responsabilidade principal para a elaboração da Política (PND) e Estratégia (END) Nacionais de Defesa e do Livro Branco da Defesa Nacional (LBDN).

Entretanto, verifica-se que, desde a criação do Ministério da Defesa (MD), em 1999, em apenas uma ocasião, quando da elaboração da primeira versão desses documentos, a autoridade política assumiu de fato a sua responsabilidade para direcionar o preparo da defesa. As demais versões foram sendo gradativamente desidratadas de avanços contidos na primeira.

Esses retrocessos não podem ser explicados apenas pela escolha recente de ministros da defesa de origem castrense, porque o início desse processo é bem anterior. Ao contrário, é preciso reconhecer que a natureza do problema é complexa. Na situação brasileira, existe uma grande independência e autonomia das forças armadas em relação ao poder político, representado pelo ministro da defesa. Essa autonomia tem implicado em que decisões importantes, principalmente as relacionadas a priorização de alocações orçamentárias, dependam de consenso entre as forças e, na sua ausência, acabem sendo procrastinadas indefinidamente. A presença de um ministro de origem militar no comando da pasta certamente não contribui para que possíveis impasses sejam quebrados, porque, apesar de ocupar um cargo político, será muito mais difícil para um militar contrariar o consenso que prevalece entre seus pares. Mas, essa presença, embora possa ser um fator considerado por muitos negativo, não é a causa raiz do problema.

Por conta dessa situação, de natureza cultural e histórica, a atuação dos ministros da defesa, quer tenham tido origem civil ou militar, tem se resumido em reivindicar aumentos no orçamento e se submeter à regra não escrita de que os percentuais do orçamento dedicados a cada força não devem ser alterados. Essa prática tem sido extremamente prejudicial ao preparo da defesa do Brasil.

Mas, o poder legislativo também possui uma grande responsabilidade em relação à defesa. O Congresso exerce papel importante na aprovação do orçamento, de leis que organizam e condicionam o funcionamento das instituições que cuidam da defesa e, também, dos documentos de alto nível para o planejamento da defesa, acima citados.

Outra forma de participação do Congresso em questões de defesa se dá através dos presidentes da Câmara e do Senado, que são membros do Conselho de Defesa Nacional (CDN). Este, como está previsto no artigo 91 da Constituição Federal, é o órgão político consultivo de mais alto nível do Presidente da República em assuntos de defesa e tem como uma de suas competências “estudar, propor e acompanhar o desenvolvimento de iniciativas necessárias a garantir a independência nacional e a defesa do Estado democrático”.

São membros natos do CDN, além dos presidentes da Câmara e do Senado, o Vice Presidente da República, os ministros da Defesa, Relações Exteriores, Justiça e Economia e os comandantes das três forças armadas. O CDN, seria, portanto, o locus ideal para gerar uma estratégia nacional abrangente para orientar e condicionar as várias estratégias setoriais com impacto na defesa, além do próprio planejamento do preparo de capacidade militar por parte do Ministério da Defesa.

Entretanto, o problema principal constatado é a falta de vontade política. Existem fortes evidências de que a defesa nacional recebe uma atenção do poder político muito aquém do mínimo que seria necessário para que o Congresso, o CDN e o próprio MD possam exercer o seu papel em decisões estratégicas envolvendo a defesa do país.

Este desinteresse tem sido apontado pelo ex-ministro da defesa Raul Jungmann, em inúmeras ocasiões em que se manifestou publicamente. Por exemplo, ele cita que os documentos de alto nível da defesa (PND, END e LBDN) sequer tem sido analisados com profundidade e discutidos pelo Congresso, que apenas os chancela burocraticamente, sem quaisquer análises ou questionamentos. Outra evidência é a inexistência de subcomissões permanentes, temporárias ou especiais, tanto na CREDEN da Câmara dos Deputados, quanto na CRE do Senado, para cuidar da defesa nacional de forma ampla. O fato é que, até hoje, essas comissões nunca deram a atenção devida à defesa.

Para finalizar, é preciso ressaltar que um fator nada desprezível para explicar este comportamento do poder político é o seu quase total desconhecimento sobre os aspectos relevantes das questões que envolvem a defesa. E não se trata apenas do despreparo dos atores políticos. Faltam estruturas, processos e, principalmente, recursos humanos qualificados no Congresso, CDN e no próprio MD, para assessorar os políticos e ajudá-los no trabalho de concepção e análise crítica de políticas, estratégias e planos. Essa deficiência é mais aguda quando se trata de enfrentar os problemas mais substantivos e materiais relacionados ao preparo. Ou seja, ao desenvolvimento e sustentação de capacidade militar.

Assim, mesmo que os atores políticos, acima mencionados, decidissem assumir um protagonismo, ainda persistiria a questão do seu despreparo em relação às questões substantivas relacionadas à defesa do país, para que possam desempenhar esse papel.

Como não é possível mudar essa situação em curto período de tempo, uma maneira pragmática de mitigar essa deficiência seria dotar o Congresso, o CDN e o próprio MD de assessoria externa, independente das corporações e quadros burocráticos do Estado. Aliás, esse tipo de recurso é corriqueiramente usado até mesmo em países em que os mencionados atores têm um preparo adequado para cuidar de assuntos de defesa, o que reforça essa necessidade no caso brasileiro.

O mundo está passando por significativas mudanças geopolíticas que afetarão todos os países. O Brasil é um gigante territorial, demográfico e econômico, mas um pigmeu militar. A atual capacidade de defesa do Brasil está muito aquém da necessária para enfrentar esses desafios e, como vimos, a estrutura nacional de defesa encontra-se acéfala. Essa é uma situação de grande vulnerabilidade, extremamente perigosa, que exige uma ação urgente no sentido de transformar as instituições de defesa do país de modo a torna-las funcionais.

Entre as várias transformações urgentes e necessárias, a mais importante e prioritária é, sem sombra de dúvidas, aquela que modifique o estado de coisas acima retratado.

Eduardo Siqueira Brick é membro titular da Academia Nacional de Engenharia, professor titular (aposentado) da Universidade Federal Fluminense, pesquisador do UFFDEFESA: Núcleo de Estudos de Defesa, Inovação, Capacitação e Competividade Industrial.

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